segunda-feira, 12 de junho de 2017

Reformando a natureza | Fernando Limongi

- Valor Econômico

Brasil já tem financiamento público de campanhas

A chapa Dilma-Temer foi absolvida. Ou melhor, absolveu-se a chapa Temer-Dilma. Boa parte dos votos, os pela absolvição pelo menos, dependeu desta inversão. O presidente foi mantido no cargo. A decisão final pouco dependeu dos fatos. Gilmar Mendes, ao iniciar seu voto, declarou claro: "Não se substitui um presidente da República a toda hora." Não, ao menos, os que contam com seu apoio.

O mandato preservado foi o de Temer e isto contou. Mas não se pode esquecer que se julgava uma chapa, isto é, que o fosso aberto dividiu aliados de ontem.

A decisão do TSE deixou claro, se é que alguém ainda tinha dúvidas, que não é a moralidade pública que define o lado dos contendores. Não é também a política social. Temer não acabou com o Bolsa Família e a Reforma da Previdência não acabará com a proteção social. Em tempos de crise, ajustes e cortes são necessários e o PT os faria se não tivesse sido apeado do poder. As diferenças entre PT, PMDB e PSDB são menores do que os discursos, disparados das duas trincheiras, deixam entrever.

Os nervos continuam acirrados e as partes, a despeito dos constantes rearranjos em curso, continuam a recorrer à ira do Profeta e a degola para resolver suas diferenças. Se ontem o PT era a personificação do mal, hoje é o Ministério Público.

Em um ponto, entretanto, há convergência entre os dois lados. Herman Benjamin e Gilmar Mendes defenderam uma reforma política como a saída para a crise. Todos querem, como a Emília de Monteiro Lobato, reformar a natureza. Não uma reforma qualquer. Coisa séria, radical.

Em meio à revolta, desenha-se o apoio ao financiamento público de campanhas, cantado em prosa e verso como a solução para todos os males passados, presentes e futuros.

A convergência pró reforma, contudo, desconsidera a experiência política do país. O Brasil tem uma das modalidades mais avançadas e radicais de financiamento público exclusivo de recursos essenciais para campanhas, o horário eleitoral gratuito. Friso o exclusivo: partidos não podem comprar tempo de TV e rádio no mercado.

O projeto que deu origem à medida é de 1960. A lei, de 1962. Os termos em que foi defendido agradariam Benjamin, Mendes e todos os reformistas convictos. Franco Montoro, autor do projeto, assim justificou a sua proposta: "um dos males mais graves da nossa vida democrática é a influência preponderante do dinheiro no processo eleitoral." Ao franquear o acesso aos meios de comunicação, estaria garantida "a própria base da democracia": "a igualdade de oportunidade". O projeto, argumentou Montoro, "tem por finalidade assegurar aos partidos políticos igual oportunidade de propaganda eleitoral". Sem ter que pedir recursos aos "grandes grupos econômicos" para levar suas propostas aos eleitores, a competição se daria em torno de ideias e programas.

Sabe-se qual foi o resultado da proposta. As expectativas de Montoro não se materializaram. A conclusão a tirar é que, por si só, o financiamento público exclusivo, por radical que seja, não resolve o problema. Não estou minimizando os efeitos do horário eleitoral gratuito. Antes o contrário: é o eixo que move todo o sistema político brasileiro. Sem colocá-lo na equação, não se entende a lógica da política brasileira.

Tudo ou quase tudo passa pelo horário eleitoral. Por exemplo, o número de partidos com representação na Câmara dos Deputados é uma função direta das enormes coligações eleitorais formadas para vencer as eleições ao governo estadual, coligações estas formadas com o intuito de aumentar o tempo de TV dos candidatos. Em outras palavras, uma coligação é a forma pela qual o partido grande compra tempo de TV que só o pequeno partido pode lhe vender. Como, por lei, as coligações para o governo estadual devem conter as formadas para disputar cadeiras na Câmara dos Deputados, segue que os pequenos partidos são recompensados de duas formas: com dinheiro (como delataram Marcelo Odebrecht e Joesley Batista) e com cadeiras pelas coligações proporcionais.

Para colocar de forma mais ampla: o financiamento público de campanha não elimina a competição por recursos escassos e, muito menos, sua influência sobre a obtenção de votos. Mudam as estratégias, que se adaptam às condições da oferta.

A experiência brasileira mostra que financiar os partidos não resolve a questão. Recursos estatais, mesmo quando generosíssimos, nunca são suficientes. Pense-se no caso da TV: é preciso produzir os programas, contratar marqueteiros etc. Quem paga? O Estado?

A decisão de distribuir recursos públicos a políticos envolve pelo menos duas decisões conexas, nenhuma delas com solução ótima aparente e com efeitos imediatos sobre a competição eleitoral.

Primeiro: é preciso definir quem tem o direito de receber recursos. Há sempre uma barreira e a altura do sarrafo, se alto ou baixo, afeta estratégias e a competição. Se muito alto, protege os incluídos e dificulta a renovação. Se baixo, como hoje no Brasil, estimula a criação de novos partidos apenas para reivindicar parte do bolo.

A divisão dos recursos cria problemas análogos. Se feita na proporção dos votos recebidos na última eleição, os maiores partidos receberão mais recursos. Mas se os maiores recebem mais recursos terão vantagens no próximo ciclo eleitoral. Mas por que favorecer justamente os mais fortes? O critério inverso não parece justo. Dar mais recursos para quem não tem votos?

A diferença crucial não é entre ter e não ter financiamento público de campanha. O crucial é como a distribuição de recursos públicos é regulada, afetando as estratégias dos que lutam para conquistar o poder. Não levar isto em conta, é querer reformar a política desconsiderando sua natureza.
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Fernando Limongi é professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap.

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