segunda-feira, 15 de maio de 2017

A dilapidação do mandato – Editorial | O Estado de S. Paulo

Numa democracia representativa, cabe aos cidadãos a escolha de seus representantes no Parlamento. Trata-se de um direito fundamental, sem o qual não há democracia. O voto é o caminho legítimo para determinar quem deve ser investido do mandato de representar os outros no debate e na aprovação das leis.

Não basta, porém, haver direito a voto para o bom funcionamento de uma democracia. É fundamental o respeito, em todas as fases do processo eleitoral, da natureza específica do mandato parlamentar, que é sempre de representação. Os parlamentares não estão lá por direito próprio nem por tempo indeterminado. Exercem tão somente uma representação que eleitor, pelo voto e a prazo certo, lhes outorgou.

No Brasil, a natureza do mandato parlamentar tem estado um tanto turva. É certo que, como manda a Constituição, há periodicamente eleições. Não é tão certo, porém, que os eleitores possam livremente eleger seus representantes. Estão sujeitos a escolher seus representantes a partir de uma lista de nomes em cuja elaboração pouca ou nenhuma influência tiveram. São os partidos políticos, bem como a Justiça Eleitoral – por estabelecer as condições de registro de candidatos, nem sempre rigorosas –, que determinam em quem o eleitor pode votar.

Em tese, a proibição de candidaturas independentes, não filiadas a partidos, deveria fortalecer o sistema de representação. Não é, porém, o que se vê. Em vez de protagonista do processo eleitoral, o eleitor tem sido condenado – porque legalmente obrigado – ao papel de depositador de votos na urna, corroborando uma situação que ele não criou e com a qual, quase sempre, não está de acordo.

Não se trata de transformar o Brasil numa democracia direta, que, como mostram as experiências levadas a cabo em outros países, é sempre bem pouco democrática, pois a vontade de uns poucos organizados termina por predominar sobre a da imensa multidão. Ainda hoje, a democracia representativa é o menos imperfeito sistema político disponível. É preciso reconhecer, no entanto, que a democracia brasileira está profundamente marcada por um perverso sistema partidário e um deformado sistema eleitoral.

Não há dúvida de que a população pode e deve votar de forma mais consciente. Mas igualmente certo é que a lista de candidatos que lhe é oferecida reflete, antes de mais nada, os interesses de uma oligarquia partidária e não propostas programáticas que consubstanciem o interesse do eleitor e do cidadão.

O problema da representação não se esgota, porém, nas urnas. Depois das eleições, os que foram investidos do mandato, invertendo a lógica da representação, parecem preocupados tão somente com a preservação do mandato nas próximas eleições. A representação da vontade do eleitor passa a ser uma realidade distante, e a atuação parlamentar torna-se refém de um deformado instinto de sobrevivência, que só enxerga as próximas eleições. Nessa situação, o cidadão fica, de fato, desprovido de representantes.

São graves as distorções dos vigentes sistemas partidário e eleitoral. É preciso, o quanto antes, uma reforma política que possibilite ao cidadão ser representado de forma mais sintonizada com seus reais interesses e escolhas. Nesse sentido, é animador constatar o andamento da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 282/2016, que estabelece a cláusula de desempenho para os partidos e acaba com as coligações partidárias nas eleições proporcionais de deputados e vereadores. Na quarta-feira passada, a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou, por 37 votos a favor e 14 contrários, a proposta que pode ajudar a tornar mais cristalina a representação.

Não é demais lembrar, porém, que toda cautela é pouca. Há quem pretenda piorar mais as coisas, como os parlamentares que tentam aprovar o voto em lista, o que deixaria o eleitor ainda mais refém de um deformado sistema partidário-eleitoral. O cidadão não poderia votar num nome de sua livre escolha, mas numa lista previamente elaborada pela direção partidária. Como se não fosse pouco insulto ao eleitor, essa proposta está sendo descaradamente apresentada como um aperfeiçoamento do sistema.

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