domingo, 5 de março de 2017

O passado na fogueira - Fernando Gabeira

- O Globo

Sei que mais de um milhão de pessoas visitaram o Rio. Senti um cheiro mais forte de pipi nas ruas em que caminho. Mas isso é quase tudo que retive do carnaval. No momento em que a Nasa anuncia a descoberta de sete novos planetas, perdi a chance de explorar esse estranho planeta de celebridades que inundam as páginas dos sites de notícias nacionais. O velho Brasil estava presente no tratamento dos dois desastres com alegorias de escolas de samba na avenida. D epois da queda, a discussão sobre as regras do jogo, que praticamente não existiam. Trump suavizou-se com o carnaval, falando em manter milhões de imigrantes nos EUA, desde que não tenham cometido crimes. Ótima notícia para os brasileiros que vivem lá. As pesquisas indicavam a baixa popularidade de Trump. Na sua equipe, já se falava em algum tipo de ajuste com a realidade. Trump dizia que as pesquisas eram falsas, mas foi esperto o bastante para não acreditar no que dizia.

A cerimônia de Quarta-Feira de Cinzas mais próxima do Brasil foi a fogueira das sardinhas na Espanha. Todo o ano repetem um ritual de queima das sardinhas, simbolizando uma renovação, com os erros do passado ardendo nas chamas. A fogueira de cinzas começou com o depoimento de Marcelo Odebrecht. Se corresponde ao que vazou, não vai balançar a chapa Dilma-Temer, mas o próprio sistema eleitoral brasileiro. Na esfera do governo, as coisas ficaram mais confusas com o depoimento do exassessor especial de Temer, José Yunes. Ele diz que recebeu uma encomenda para Padilha no seu escritório, entregue pelo doleiro Lúcio Funaro, certamente o réu mais violento da Lava-Jato, pelo menos verbalmente. Ora aparece ameaçando comer fígados literalmente, ora aparece ameaçando incendiar a casa de um cúmplice com as crianças dentro.

Pelo conjunto dos depoimentos conhecidos, R$ 10 milhões da Odebrecht teriam ido para as mãos do PMDB, depois de uma reunião com Temer. A encomenda de Padilha deveria, pelos cálculos, conter R$ 1 milhão. Yunes afirmou que era apenas um envelope. Em certo momento usou a palavra pacote, depois recuou para envelope. De fato, num envelope não cabe um milhão. Certamente não continha tíquetes de refeição nem vales-transporte. Mas ainda assim há algo que não bate.

Desde o princípio imaginei um cenário em que Temer teria como foco uma necessária reforma na economia, mas sempre jogando ao mar seus ministros comprometidos com a Lava-Jato. Nessa análise de princípio de governo, afirmei que Temer precisava ficar atento para a hipótese de, em algum momento, também ele ter de se jogar ao mar. Pelo curso dos processos que o envolvem, o cenário mais provável é de que conclua o governo, mas com uma equipe muito diferente do começo. Seu ponto de estabilidade é o apoio do Congresso. Ali, cobra-se um preço alto pelos votos: cargos, verbas, prestígio. Mas a fogueira vai ficar mais intensa quando abrirem os depoimentos dos 77 dirigentes da Odebrecht. O próprio Congresso será abalado. Assim, abalados e estremecidos, Temer e o Congresso precisam achar uma saída para a economia —é a maneira de atenuar o julgamento negativo sobre eles. Muitos gostariam de congelar ou retardar a dinâmica política para que as mudanças econômicas fluíssem mais rapidamente.

Mas nessa fogueira que a Quarta-Feira de Cinzas inaugura não queimaremos sardinhas, mas um sistema político-partidário e um processo eleitoral pra lá de Marrakesh. Não adianta se fixar na economia. As coisas andam juntas. Há uma demanda real por mudanças, e hoje ela se expressa na condenação do chamado foro especial. Não vejo por que isso pode atrapalhar o rumo da economia. Muito menos me preocupa o fato de os manifestantes não terem um líder ou um partido para orientar sua trajetória. Ou acham seu caminho e formam seus líderes no processo de erros e acertos, ou param para esperar um líder, um Dom Sebastião. E preciso fazer os cálculos contando com a Lava-Jato completando seu trabalho, no ritmo de suas descobertas e com os manifestantes na rua questionando os mecanismos legais que impedem a punição dos políticos.

As ruas e a Lava-Jato acabam interagindo, e isso torna mais urgente a mudança. O único senão que tenho sobre essas manifestações é que são marcadas com muita antecedência. Há momentos em que a mobilização é mais fácil. Em Madri, uma manifestação convocada em 48 horas mudou o rumo das eleições após um atentado terrorista. Os prazos mais longos são cheios de altos e baixos, momentos de relativa frieza. Eles comportam também fluxos e refluxos na disposição coletiva. Mas, a julgar pelo que aconteceu no continente, as delações de Odebrecht incendeiam a atmosfera política.

Possivelmente, em março, com todos os debates que elas vão suscitar, o momento esteja mesmo maduro para uma investida contra o foro privilegiado. E não só para punir culpados. Mas para filtrar o processo. Quantos não buscam um mandato só para escapar da Justiça?

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