domingo, 5 de março de 2017

Jogo de gente grande - *Fernando Henrique Cardoso

- O Estado de S. Paulo

Os sinais do futuro podem não ser do nosso agrado, mas com eles teremos de nos haver

No carnaval passeei com casais amigos por Florença e vizinhanças. Há mais de meio século, eu, minha mulher Ruth, Bento e Lucia Prado e Arthur Giannotti passeáramos pela mesma região com a fascinação da primeira vez e a energia da juventude. Lá, de onde escrevo este artigo, passamos o 31 de dezembro de 1961.

Desta vez, com o mesmo deslumbramento, revi o que pude das cidades toscanas. Em 1961 vivíamos o clima da guerra fria – russos e americanos se enfrentavam por procuração, como na “crise dos mísseis” em Cuba – e as marcas da guerra quente estavam presentes na Europa bombardeada. Agora, nem mesmo a eventual tensão belicosa que os dias de Trump deixam entrever assusta o Ocidente. A memória se esfuma: passa-se por um ou outro cemitério americano em solo italiano e só os mais velhos, imagino, ainda se lembram do que foi a luta dos Aliados contra o Eixo totalitário. Em poucos brasileiros ressoam os nomes de Monte Cassino e Monte Castello, marcos do heroísmo dos soldados brasileiros.

É bom, entretanto, não esquecer. Desfrutando o gênio de Masaccio ou o colorido e a perspectiva dos afrescos de Ghirlandaio, a poucos passos um do outro na Santa Maria Novella, é bom nos darmos conta de que o que o passado construiu pode romper-se, e não só na arte. Vale a pena recordar que a História é mãe e madrasta ao mesmo tempo. Os sinais do futuro podem não ser do nosso agrado, mas com eles teremos de nos haver.

O pós-guerra, a despeito das diferenças entre comunistas e capitalistas, resultou na criação das Nações Unidas e na corresponsabilização dos vencedores da guerra pela ordem global e pela paz mundial. O arcabouço político que precedeu a globalização econômica está se modificando e a continuidade do que pareceria imutável no espírito ocidental depois de tanta violência e morte, o internacionalismo, não pode mais ser tomado como algo definitivo. Será que os eleitores do Brexit ou os rebelados do Rust Belt, que atribuem suas perdas à globalização e aos imigrantes, acaso se deram conta de que estão destruindo o que as gerações passadas fizeram com tanto esforço? Provavelmente não, e pouco importa.

O certo é que o “equilíbrio de poder” que americanos, chineses, russos e europeus construíram depois da guerra de 1939-45 está abalado. E não pela “desglobalização” ou pelas crises da economia – que sempre pesam –, mas pela visão do mundo e do poder que os governantes da geração atual parecem acalentar. Os Estados Unidos com Trump se retraem dos compromissos internacionais: o “America first” de Trump visa mais o fortalecimento da economia doméstica que o predomínio mundial. Os chineses se expandem na economia e se fortalecem regionalmente, mas sem empenho em construir o mundo à sua semelhança, como tinham os americanos. A Rússia se contenta em intervir em lugares de onde era excluída, da “sua” área imperial e das zonas onde historicamente os otomanos deram as cartas. E por aí vão refazendo caminhos os antigos donos do mundo, deixando a Europa escabreada.

Diante disso, o que cabe aos que ainda não têm voz decisiva no capítulo global, como nós, brasileiros, é nos darmos conta de nossos interesses e ver estrategicamente, sem alinhamentos automáticos, nem mesmo ideológicos (pois disso não se trata, como na luta contra o totalitarismo ou o comunismo), para que lado vai o mundo e como melhor nos situamos nele.

Esse “pragmatismo responsável” não se deve eximir de tomar partido, entretanto, na defesa dos direitos humanos e da democracia, quando for o caso. Tampouco deve deixar de avaliar friamente os interesses econômicos do nosso povo. Se até Larry Summers, ex-ministro da Fazenda dos Estados Unidos e pilar do pensamento liberal de mercado, para compensar as angústias da globalização, apresentou um texto ao Berggruen Institute falando de “nacionalismo responsável”, por que não deveríamos repensar nossas chances, nossos interesses e responsabilidades quando uma nova ordem mundial começa a esboçar-se?

O Itamaraty, sob a batuta de José Serra, reviu posições e revigorou alguns de nossos antigos propósitos. Dentre estes, o fortalecimento da cláusula democrática no Mercosul e a consequente cobrança de novos rumos na Venezuela. Precisamos intensificar os liames com os vizinhos da América do Sul no lado do Pacífico e, principalmente, dar maior força à nossa ligação com a Argentina. Da mesma forma, necessitamos de sólida reaproximação com o México, flechado por Trump; devemos ampliar nossas convergências, não só econômicas, mas políticas, com aquele país. O muro proposto separa não apenas o México: separa os latino-americanos e os americanos adversos à insensatez de Trump.

Começamos a vislumbrar que as mudanças no tabuleiro internacional não vão na direção de um novo Hegemon, mas abrem espaço para alianças regionais que podem transcender o Hemisfério. Neste, por escolha dos Estados Unidos, estão distantes os tempos da Alca. Quem sabe um acordo com o Mercosul se torne viável, com os alemães à frente e os ingleses correndo à parte, mas também interessados, ao se distanciarem de Bruxelas, em não perder espaços no mundo. China e Índia, que crescem a 7% ao ano, precisarão cada vez mais de comida e minérios de que dispomos.

O rearranjo atual da ordem global não tem força para estancar o que as mudanças culturais e tecnológicas tornaram irreversível: as consequências do aumento da produtividade e a integração produtiva. As mudanças em curso decorrem mais das questões de poder do que das econômicas. Isso não nos leva a descuidar de nossa base produtiva, mas nos induz a não descuidar dos meios disponíveis de poder, que incluem capacidade de defesa e visão estratégica. É o que esperamos do governo ao nomear um novo ministro para as Relações Exteriores: que não se esqueça de que entraremos num jogo “de gente grande”.

* Sociólogo, foi presidente da República

Nenhum comentário: