quinta-feira, 2 de março de 2017

Ideias fora do lugar - Míriam Leitão

- O Globo

O presidente Trump falou em reforma tributária para estimular o comércio internacional. Não deu detalhes, mas uma das ideias já defendidas por ele fere frontalmente as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC). Ele prometeu abatimento no Imposto de Renda da empresa que comprar produtos americanos. Trump pode tentar ignorar a OMC, mas isso é inaceitável pelas regras assinadas pelos EUA.

No seu discurso ao Congresso, ele fez propostas econômicas citando ideias e líderes fora do contexto histórico. Investir em infraestrutura tem sempre efeitos positivos na economia, mas fazer um programa de US$ 1 trilhão de obras e ao mesmo tempo barrar trabalhadores estrangeiros nos Estados Unidos atual pode ser difícil. Trump citou Dwight Eisenhower para dizer o que pretende fazer na infraestrutura e, com isso, criar “milhões de empregos”. A economia é bem mais complexa que nos anos 1950 de Eisenhower. A construção civil americana é cheia de trabalhadores de outros países, muitos deles sem documentação. Trump fez de fato uma proposta vazia, porque falou no valor, mas não apresentou exatamente um plano indicando onde e o que pretende reconstruir.

Ao tratar das barreiras às importações e de “comércio justo”, citou Abraham Lincoln, que falava de uma economia do século XIX, nada a ver com a complexidade do intercâmbio de mercadorias e serviços na era da globalização.

Trump fez sucesso no mundo dos negócios — apesar de alguns fracassos — mas aparentemente não viu a mudança econômica pela qual o mundo passou. Disse no Congresso que cumprirá suas promessas e citou várias empresas — Ford, Fiat-Chrysler, General Motors, Sprint, Softbank, Lockheed, Intel, Walmart — que anunciaram investimentos nos Estados Unidos após a sua eleição. Todas essas empresas sempre investiram nos Estados Unidos, mas dificilmente qualquer uma delas abrirá mão de ter partes de suas produções em outros países, porque é assim que a indústria se organiza hoje. E o setor de serviços também.

A imprensa ressaltou o novo tom, mais ameno, que ele usou no discurso. O presidente, na verdade, fez uma correção de rumos, nas palavras usadas, apesar de continuar na mesma direção. Ao falar que também quer trabalhar com o Partido Democrata, estava corrigin- do uma falha do seu discurso de posse. Normalmente, o governante, ao falar pela primeira vez ao país, tenta cruzar as fronteiras partidárias. O que Trump falou ao assumir o cargo foi completamente fora do tom para a ocasião. E passou o primeiro mês em brigas nada triviais, como o ataque à imprensa. Na terça-feira, ele tentou no Congresso corrigir esse erro. Mas não houve qualquer mudança substancial na sua proposta. Ele quer mais dinheiro para a máquina de guerra, reduzindose os recursos para a diplomacia e a proteção ambiental. Pediu a eliminação do Obamacare e avisou que começará imediatamente a construção do muro na fronteira com o México.

Ele prometeu eliminar velhas legislações que reduzem emprego em cada agência governamental: para uma legislação nova, duas velhas precisam ser eliminadas. O temor aqui é o que ele considerava velha lei que desemprega. Ele já deu sinais de que na área ambiental quer eliminar todas as normas criadas recentemente. Desregulação sempre foi uma bandeira cara ao partido Republicano.

E por falar nele: o partido que parecia ter dificuldades de engolir Trump e seu radicalismo comportou-se ao gosto do presidente. Aplaudiu-o de pé em inúmeras partes do discurso, sem fazer qualquer demonstração de discordância.

Sua visão da história recente é a de que esta foi a “pior recuperação de crise econômica em 65 anos” e que o presidente Barack Obama criou mais dívida do que todos os seus antecessores. É uma falsificação dos fatos. O salto da dívida foi dado por causa da crise financeira em setembro de 2008. Obama assumiu em janeiro de 2009. Não foi ele que fez o aumento da dívida. Ao contrário, Obama conduziu o país a uma recuperação econômica que se não foi brilhante deixou o país bem melhor do que encontrou. Mas Trump é e sempre será a pessoa dos “fatos alternativos”. Para ele, o importante não é o que aconteceu, mas a narrativa que consegue criar. Uma doença que acontece em outros países e em outras tendências políticas.

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