segunda-feira, 27 de março de 2017

FHC relembra gerência de crise cambial

Por César Felício | Valor Econômico

SÃO PAULO - As desastrosas consequências políticas da desvalorização do real, em 13 de janeiro de 1999, e a mágoa com o ex-presidente Itamar Franco (1930-2011), então governador de Minas Gerais, por ter declarado seis dias antes a suspensão do pagamento de títulos de dívida externa do Estado, perpassam os momentos decisivos do terceiro volume dos "Diários da Presidência", lançado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, com a degravação da narração quase cotidiana dos dois primeiros anos de seu segundo mandato.

Nos anos de 1999 e 2000, FHC permaneceu acuado, como demonstra a reflexão feita em agosto de 2000, depois de ler a biografia do ex-presidente americano Woodrow Wilson, que governou entre 1913 e 1920, negociou o Tratado de Versalhes, mas foi desautorizado pelo Congresso e ficou incapacitado após um derrame no último ano de governo. "Não é momento para ler essas coisas, porque o Wilson começou brilhante e terminou melancólico, aqui também o governo no primeiro mandato foi brilhante e até agora, nesse um ano e meio de segundo governo, eu diria que tem sido muito duro. Não melancólico, mas muito duro".

A crise da moeda e o rompimento de Itamar se entrelaçaram em um verão inesquecível. No dia 7 de janeiro de 1999, Itamar anunciou a decisão de não pagar US$ 108 milhões em "eurobonds" que venciam no mês seguinte. Preocupado com o problema cambial, FHC registra o fato em três linhas: " Itamar corcoveando com o negócio da dívida, não quer pagar. O que quer, na verdade, é criar um caso político. Daqui a pouco vou ter que dar uma paulada firme nele".

A preocupação do presidente era sair do que chamou de "armadilha cambial", representada pelo câmbio virtualmente fixo a R$ 1,21 o dólar, com a taxa básica de juros Selic em 28,95%, ou "na lua", nas palavras do tucano. FHC queria demitir o então presidente do Banco Central, Gustavo Franco, que resistia a desvalorizar, mas temia pela repercussão. "Qualquer mexida agora pode ter cheiro de desastre", assinalou no dia 6.

No dia 8, em um almoço, Fernando Henrique selou a demissão de Gustavo Franco e na mesma tarde chamou Francisco Lopes para substituí-lo. O Brasil já estava desestabilizado pela ação do antecessor do presidente, com queda de 5,1% na Bovespa.

Fernando Henrique viajou para descansar em Aracaju no dia 13 de janeiro, o que não foi uma boa ideia. Neste dia houve o anúncio da demissão de Franco e sua substituição por Lopes, que anunciou a "banda diagonal endógena", nova modalidade cambial que permitiria uma desvalorização mitigada. O dólar disparou 8,9% e os juros futuros subiram 7%. FHC voltou imediatamente.

Em conversa por telefone com Michel Candessus, diretor do Fundo Monetário Internacional (FMI), deixou claro as pressões que sofria. "O Fundo Monetário acha que é preciso avançar na questão fiscal (..) eu disse a eles: o que eles querem? Algum sinal na privatização. Já sei: ou a Petrobras ou o Banco do Brasil. Pois bem: não vou privatizar nem um nem outro", afirmou ao gravador. "Como é que vamos quebrar os ritos da democracia? No fundo, o desejo dos países industrializados e do Fundo Monetário é a quebra da democracia".

O dia 14 foi definido como "desastroso" por FHC, com uma queda de dez pontos percentuais na Bolsa. Cansado, o presidente viajou para a fazenda que tinha em Buritis (MG), e lá ficou pendurado no telefone com Malan. "Ele já reconhecia um desastre e começamos a falar em alternativas", disse. FHC também falou por telefone com o presidente do Banco Central e não gostou da conversa. "Vejo o Chico meio desorientado", disse a Malan. A opção foi deixar o dólar flutuar e a cotação passou de R$ 1,32 para R$ 1,55. FHC interrompeu o descanso e voltou para Brasília no dia 15.

A situação iria se deteriorar na semana seguinte, com o dólar batendo em R$ 1,80 no dia 22. Malan apareceu no Alvorada às onze da noite para reclamar de Chico Lopes. "A situação no FMI ficou muito difícil, porque eles foram pegos de surpresa e que ele tinha o tempo todo tentado restabelecer relações com Larry Summers (subsecretário do Tesouro dos EUA) e com Stanley Fischer (o número dois do FMI)".

Malan apresentou no dia 23 oito alternativas. FHC comentou que qualquer escolha teria que ter apoio externo antes. "Não temos mais força", disse. O ministro da Fazenda afirmou então que Chico Lopes, nomeado dez dias antes, não tinha mais condições de ficar no Banco Central. Em seguida, pediu demissão, que foi negada.

No dia 26 o dólar chegou a R$ 1,97 e o banqueiro Joseph Safra reclamou de falta de liquidez no mercado. "O FMI insiste em continuar pondo o sarrafo cada vez mais alto para nós pularmos", disse. O PT começou a falar em encurtamento do mandato. No dia 30, o presidente dos Estados Unidos Bill Clinton telefonou e mencionou "certo rumor de falta de confiança recíproca entre Tesouro e FMI, por um lado, e sobretudo o Banco Central por outro". A demissão de Chico Lopes, contudo, já estava decidida há dias. No dia 31, Arminio formalizou a aceitação do convite.

No livro, FHC definiu entretanto a maré de denúncias contra o ex-secretário-geral da Presidência, Eduardo Jorge, como o seu pior momento político. As denúncias começaram com matéria no jornal Valor em julho de 2000 em que se revelou que Eduardo Jorge manteve contato com o então juiz foragido Nicolau dos Santos Neto, do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, acusado de ter desviado R$ 169 milhões. "O desgaste meu e do governo é enorme nestes dias, o estrago causado pela questão 'Eduardo Jorge' foi incomensurável, o maior que já sofri sem fazer nada", disse.

O escândalo de Eduardo Jorge, contudo, não teve consequências judiciais para o ex-presidente. Eduardo Jorge foi absolvido de todas as acusações de que teria algum envolvimento com desvios. A entrada de Arminio marcou o início da política econômica do tripé (responsabilidade fiscal, câmbio flutuante e metas de inflação), que estabilizou a economia. A popularidade perdida na ocasião nunca mais voltou. FHC e Itamar se reconciliariam em 2010.

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