domingo, 19 de fevereiro de 2017

O tempo da incerteza - Luiz Sérgio Henriques*

- O Estado de S. Paulo

Talvez as mudanças em curso não sejam muito mais caóticas do que o mundo conhecido...

Os afeitos à arqueologia política, saudosos talvez de explicações mais simples do mundo, podem fazer recuar a máquina do tempo e evocar a geopolítica evidenciada em documentos do velho comunismo, os quais ordenavam em nível planetário corações e mentes que davam vida a toda uma importante corrente do já distante século passado. Por essa explicação, a roda da História girava com determinação e obedecia a leis mais ou menos precisas e automáticas, só aqui ou ali rapidamente detidas por acidentes singulares, incapazes de alterar o sentido geral das coisas.

A partir de um núcleo – uma espécie de Meca secularizada, como seria a Moscou revolucionária há exatos cem anos –, irradiavam-se os diversos partidos comunistas nacionais, uns mais, outros menos enraizados na realidade local, secundados, nos amplos territórios então coloniais, por movimentos de libertação que punham em xeque o velho imperialismo europeu e aquele novíssimo, de marca norte-americana. Um círculo de ferro se estreitava em torno da “metrópole capitalista” e países da periferia, como o Vietnã ou as colônias portuguesas na África, seriam como peças de dominó, caindo em sequência e sendo anexadas ao bloco socialista.

Na verdade, a tal “metrópole”, mesmo em aparente situação defensiva, dispunha de armas poderosas. Por exemplo, podia transformar o “terceiro mundo” em arena de conflitos localizados, não raro apoiando ditaduras sangrentas e travando guerras por procuração. Acima de tudo, apresentava como vitrines irresistíveis dois modelos dinâmicos de sociedade: o primeiro, seu verdadeiro motor, de corte mais privatista; o segundo de feição mais suave, em que se combinavam mercado e direitos de modo concertado. Trata-se, evidentemente, dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, esta última a viver seus “trinta anos gloriosos” do segundo pós-guerra.

Na visão comunista ortodoxa, a social-democracia europeia não passava de uma “concessão da burguesia”, não o bom resultado da presença massiva de sindicatos e partidos, barganhando vantagens que iam além do plano econômico. Com efeito, a generalização da democracia política e de valores como a justiça e a solidariedade tinham a marca de uma esquerda de classe convertida ao Ocidente político. Mais do que isso: parte constitutiva desse mesmo Ocidente.

Um cenário assim desenhado parecia excluir mudanças bruscas, a não ser em suas margens “terceiro-mundistas”, em que se misturavam periodicamente guerrilheiros de aura romântica e intelectuais radicalizados. O jogo que se jogava tinha aparência previsível: classes e comportamentos eleitorais apareciam fortemente correlacionados em cada país. As superpotências conferiam-se mutuamente sinal verde para resolver cisões ou dissidências no próprio “campo”, e a dissuasão atômica sinalizava a reiteração de imensa e complexa “guerra de posições”, com movimentos lentos e estudados de todos os contendores. Um tempo de enxadristas pacientes.

Como é sabido, 1989 cai – à primeira vista – como um raio em dia de céu sereno: um dos dois “campos” implode sob o peso de sua ineficiência econômica, passada a primeira industrialização extensiva, e muito especialmente de sua rigidez política, que nem remotamente conseguira absorver as estruturas flexíveis e sofisticadas das democracias liberais. Abriu-se assim, imediatamente, uma fase marcada pelos grandes lances sucessivos de uma “guerra de movimento”, coroando, nos termos de uma visão apologética que se fez senso comum, o triunfo do mercado e da democracia, ambos pobremente qualificados. O fim da História, em suma.

O contexto superficialmente ordenado da guerra fria e da competição entre sistemas, com racionalidade própria e razoável grau de previsão, daria lugar, depois da euforia inicial, a outro de grandes incertezas, que estamos distantes de conseguir minimamente “elevar a conceito”. Fortemente assimétrica, a unificação do mundo não teve sentido único e comportou resultados inesperados, como a ascensão da China e da Índia à condição de potências econômicas, imensas fragilidades internas à parte. A política manteve-se fortemente atrasada em relação ao ritmo alucinante da economia: as instituições supranacionais entraram em crise, atacadas por movimentos nativistas que prometem muros, acenam com exclusões sociais e étnicas, põem em questão tendências pluridecenais à tolerância e à aceitação da diversidade.

No próprio cerne do Ocidente político, as conquistas de civilização veem-se ameaçadas de modo antes impensável. Rompeu-se ou se esgarçou o nexo entre o mundo dos trabalhadores manuais e o sistema democrático – um nexo que, a bem da verdade, contou regularmente com a mediação da esquerda, socialista ou comunista, que integrava aqueles setores na política e na sociedade. Agora, os “desconectados” do mundo global se tornaram massa de manobra de políticos “populistas” – se quisermos usar o termo polissêmico – ou, para dizê-lo abertamente, neofascistas, como em tantas situações europeias. E, ainda por cima, setores da própria esquerda apregoam, mesmo depois das recentes e malfadadas experiências latino-americanas, a atualidade da “forma populista da luta de classes” como alternativa, ao mesmo tempo medíocre e arriscada, às tendências autoritárias que se estão gestando.

Pode ser que as mudanças em curso não sejam muito mais caóticas do que o mundo mapeado e conhecido no qual nos movíamos familiarmente há algum tempo. Tudo somado, como dizia um historiador, todas as épocas estão a igual distância de Deus – e, acrescentaríamos, bem longe de qualquer perfeição. Uma hipótese de superação – provisória! – das forças desagregadoras só pode advir da reunião em torno do ideal democrático das grandes tradições que nos trouxeram até aqui. Com a palavra, por toda parte e como sempre na hora do perigo, conservadores, liberais e socialistas.

*Tradutor e Ensaísta, é um dos organizadores das 'obras' de Gramsci no Brasil

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