sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

A força das narrativas – Rogério Furquim Werneck

- O Globo

Não há dúvida de que o quadro político com que se defronta Temer tornou-se extremamente intrincado

O Planalto já não alimenta ilusões sobre a duração do clima de alarme que se instalou em Brasília. As coisas não vão se acalmar tão cedo. Entalado entre os desdobramentos das delações da Odebrecht, de um lado, e a incapacidade da PGR e do STF de dar vazão às dezenas de investigações e julgamentos de parlamentares e ministros com direito a foro privilegiado, de outro, o governo sabe o que lhe espera. Está fadado a atravessar 2017 — a melhor parte do que lhe resta de mandato — com o Congresso em ebulição e a base aliada em permanente sobressalto.

E é nesse clima que Temer terá de assegurar o avanço da pesada agenda que precisa tramitar no Congresso, a preservação do delicado círculo virtuoso de retomada da economia e, ainda, a construção de uma coalizão política promissora, em torno de um candidato que possa disputar com sucesso a eleição de 2018 e tornar crível a ideia de que o esforço de ajuste fiscal, de fato, terá continuidade no próximo mandato presidencial.

Não será fácil. É o mínimo que se pode dizer. E para alcançar todos esses objetivos em um ambiente tão adverso, o governo terá de manter um discurso coerente, que dê sustentação à narrativa de que o plano de jogo contemplado pelo Planalto é viável. No duro embate de narrativas que será travado no país nos próximos meses, o governo terá de levar a melhor.

A influência das narrativas no desempenho da economia e nos desdobramentos do processo político tem sido amplamente reconhecida. Até mesmo pelos economistas. Foi este o tópico do discurso que Robert Shiller, presidente da American Economic Association, proferiu na reunião anual da associação realizada em Chicago, em janeiro passado. O instigante artigo sobre economia das narrativas de Shiller — agraciado com o Prêmio Nobel, em 2013, por suas contribuições à análise empírica de preços de ativos — está disponível em http://aida .wss. yale.edu/~shiller/

O presidente Temer parece ter plena consciência de quão importante lhe tem sido, até agora, a boa narrativa que se disseminou sobre sua condução da política econômica. Uma narrativa que leva em conta a montagem de uma equipe econômica de alto nível, sem as mazelas que afligem boa parte do resto do governo, o reconhecimento sem dissimulações das reais proporções do atoleiro em que o país foi metido, a opção por um programa de ajuste paulatino, distribuído ao longo de vários anos, com etapas claramente definidas, e os avanços convincentes nesse plano de jogo.

Mas, desde o fim do ano, na esteira da crescente apreensão do Congresso e do Planalto com a evolução da Lava-Jato e operações similares, o sucesso dessa narrativa sobre a condução da política econômica vem sendo flagrantemente empanado pela progressiva deterioração das narrativas sobre a articulação política do governo.

Não há dúvida de que o quadro político com que se defronta Temer tornou-se extremamente intrincado. É bem sabido que a coalizão que lhe dá apoio no Congresso não é propriamente formada por varões de Plutarco. Boa parte dela tem razões de sobra para se preocupar com a Lava-Jato e tudo mais que vem por aí. Mas, para fazer avançar a pesada agenda que terá de aprovar no Congresso em 2017, Temer não pode abrir mão de seu apoio. Como o Planalto poderá manter o respaldo da problemática base aliada sem ficar malvisto?

Em meio a essa sinuca, Temer tem de tomar todo o cuidado para não dar alento a uma narrativa do tipo Dr. Jekyll e Mr. Hyde: o presidente que, de dia, mantém um discurso respeitável sobre a condução da política econômica passaria as noites em tenebrosa conspiração com lobões da base aliada para “estancar a sangria” da Lava-Jato.

Manter o apoio da base aliada sem deixar que narrativas negativas como essa prosperem é o grande desafio com que se defronta Temer. A desastrosa perda de estribeiras que se permitiu o ministro Moreira Franco, na longa entrevista que concedeu ao “Valor Econômico” (22/2), mostra que o Planalto vem enfrentando sérias dificuldades para lidar com esse desafio.

*Rogério Furquim Werneck é economista e professor da PUC-Rio

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