domingo, 1 de janeiro de 2017

Muitos anos em um – Editorial | Folha de S. Paulo

Quem detinha o poder não mais o exerce. Quem em liberdade desfrutava de status e riqueza está preso. Frustraram-se expectativas econômicas e subverteram-se, nas urnas, desfechos de votações tidos como certos. O mundo e o Brasil se mostraram mais complexos e imprevisíveis do que se supunha no desenrolar de 2016.

O impeachment de Dilma Rousseff (PT) não é fato a festejar. Há algo errado numa jovem democracia que depõe, pela via legítima da Constituição, dois chefes de Estado num lapso de 24 anos. Falharam os controles que deveriam evitar o uso desse recurso brutal e traumático contra o mandato presidencial concedido pelo voto direto.

A reincidência do impeachment não foi o único elemento incomum. Extraordinária também se mostrou a latitude do poder presidencial para atropelar a responsabilidade fiscal e sustentar seu apoio com centenas de bilhões de reais em contratos e créditos a fluir por fora do Orçamento, nos balcões de empresas e bancos estatais engordados.

Uma parcela dessa dinheirama fluiu para políticos de todos os naipes a título de propina. Empreiteiras compravam regulamentos no Legislativo. Financiavam governistas e oposicionistas na União, nos Estados e nos municípios com a mesma lógica de quem adquire serviço em mercado especializado.

Se a fatia majoritária dos fundos retirados do contribuinte, ou emprestados a juros de agiota dos detentores da dívida estatal, houvesse sido aplicada diligentemente, ainda haveria um pequeno alívio.

Quase tudo o que fez, no entanto, foi alimentar o Leviatã da ineficiência e projetos megalomaníacos que jamais serão recompensados.

A deficiência de controle em aspectos importantes do funcionamento do Estado esteve, portanto, entre as causas da violenta recessão que engolfou o Brasil a partir de meados de 2014, cujos efeitos acumularam-se nos anos seguintes e ajudaram a demolir a base popular e política de Dilma.

Mal controlado também estava um sistema de apoio cuja cooptação dependia de moeda suja.

O avanço da Lava Jato e as maiores manifestações populares da chamada Nova República fizeram o que os instrumentos preventivos não conseguiram. Impuseram um custo elevado à manutenção do statu quo. Dilma não entendeu o recado, apostou em mais do mesmo, atiçou a polarização —e caiu.

A mensagem de que a lei impera sobre todos —reforçada por outras ações que na Justiça derrubaram poderosos— e a disposição de milhares de pessoas de antepor-se nas ruas aos governantes de turno estão entre os poucos fatos positivos num ano cheio de notícias ruins.

Soergueram-se o Ministério Público e o Poder Judiciário, mas a extensão no tempo e a multiplicação de prisões sem juízo de culpa formado, o hábito de impor condução coercitiva a quem jamais se recusara a depor e a divulgação por autoridades de informações fora dos cânones legais são ocorrências preocupantes que se acentuaram em 2016.

A velocidade exemplar de Curitiba na condução dos processos penais fez ressaltar a morosidade da Procuradoria-Geral da República nos casos submetidos ao Supremo Tribunal Federal. É péssima a mensagem que esse duplo padrão transmite: mais estropiado, inclusive na Justiça, está quem perdeu o poder político em Brasília.

Iluminadas e talvez estimuladas pelos holofotes, as veleidades e as idiossincrasias do STF também têm custado caro. Ministros comentaram as mais delicadas questões fora dos autos e intrometeram-se individualmente em assuntos típicos da alçada legislativa ou executiva.

Acuadas, lideranças do Congresso reagiram da pior maneira. Não desistiram de revidar a quem as investiga. O presidente do Senado chegou ao desplante de ignorar uma ordem judicial.

Na economia, o remédio tardio mas necessário ministrado ao paciente descuidado será uma camisa de força nos gastos públicos por ao menos uma década, além de uma reforma da Previdência duríssima para todos os trabalhadores. A receita amarga tende a reproduzir-se nos Estados. Não aceitá-la produzirá desmantelo nos serviços básicos.

Fora do país, o quadro não ajudou. A ameaça dos nacionalismos tornou-se mais que uma hipótese após a vitória de campanhas isolacionistas no Reino Unido —que decidiu em junho deixar a União Europeia— e nos EUA —que elegeram Donald Trump em novembro.

A melhor doutrina da convivência humana e o pensamento progressista sofreram revés histórico.

O Brasil não se precaveu e está sofrendo mais. Resta a esperança de termos aprendido as principais lições, para que as próximas crises por aqui sejam no mínimo suaves e encontrem uma democracia bem mais fortalecida a dar-lhes combate.

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