quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

O rebanho na sala - Maria Cristina Fernandes

- Valor Econômico

• Texto aprovado não explicita a anistia. Nem a impede

A entrevista dos presidentes da República, da Câmara e do Senado no domingo encontrou na madrugada de ontem sua mais completa tradução. Michel Temer, Rodrigo Maia e Renan Calheiros se comprometeram a não chancelar a anistia aos crimes da Lava-jato. O substitutivo das 10 medidas anticorrupção aprovado na Câmara, de fato, não explicita a anistia. Nem a impede.

Tal como o projeto está redigido, sua sanção não constrange os chefes da nação a descumprir a palavra empenhada, mas abre uma avenida de interpretações para que a punição aos envolvidos na lista da Odebrecht seja modulada. A inclusão do artigo que prevê o abuso de autoridade de magistrados e procuradores é apenas um dos bodes no salão de uma República inaugurada com um pacto de sobrevivência.

Não foi por coincidência que tanto Maia quanto Calheiros mencionaram no domingo a existência de uma anistia no projeto de repatriação de recursos - "Contra a qual ninguém se manifestou", acrescentou o presidente da Câmara - antes de firmarem compromisso contra a extensão do benefício para parlamentares que se financiam com o ilícito. Depois de duas tentativas fracassadas de incluir uma menção explícita à anistia, restaria às lideranças parlamentares apostar na queda de braço pela interpretação de que a criminalização do caixa 2, uma vez decretada, não poderia ser aplicada retroativamente.

Daí porque a tipificação do abuso de autoridade ganhou importância e amplitude no Congresso. Como o Senado já tem um projeto em discussão sobre o tema, o texto votado pela Câmara subscreve sua prioridade no Congresso para o embate institucional em curso. A harmonia entre as duas Casas não tardará a produzir um único texto que venha a fortalecer o Legislativo na queda de braço com o Judiciário.

Parece improvável que sobreviva o artigo do texto sobre abuso de autoridade que veda a manifestação pública de magistrados sobre processos pendentes de julgamento. Pelo menos não enquanto o ministro do Supremo e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Gilmar Mendes, exibir plenos poderes, inclusive sobre o destino do presidente da República.

A lei hoje em vigor, que soma 51 anos, é de um tempo em que autoridade e abuso eram quase sinônimos. Não surpreende que não seja capaz de punir um ou outro. É unânime a avaliação de que outro texto é necessário. É igualmente consensual a constatação de que o momento foi escolhido a dedo para constranger o Judiciário, mas apenas uma minoria desconfia que o Legislativo esteja a esticar demais a corda no enfrentamento com o Ministério Público.

O juiz Sérgio Moro provavelmente sabia a reação que poderia vir a gerar quando se decidiu pela divulgação do grampo de um presidente da República. Foi ali, no entanto, que ganhou os exércitos para a batalha em curso. Os procuradores da Lava-jato também já imaginavam o risco de as 10 medidas anticorrupção virem a ser desfiguradas pelo Congresso. Se decidiram enfrentá-lo é porque sabiam que, se a contraofensiva viria de qualquer forma, melhor que partisse de um texto originado em sua corporação. Mais determinante do que a primazia na proposição, no entanto, foi a ampliação da capacidade de arregimentação do Ministério Público a partir da campanha de coleta de assinaturas das 10 medidas.

A manifestação da semana nada tem a ver com os seguidores de Deltan Dallagnol, mas com a PEC dos gastos e a reforma do ensino médio. O quebra-quebra da Esplanada dos Ministérios deve levar o presidente Michel Temer a bater o porrete na mesa em pronunciamento em cadeia de rádio e TV, a ser convocado quando do envio da reforma da Previdência.

No embate institucional, no entanto, é o alcance da manifestação convocada para o fim de semana que mais desafia os poderes. O que está em jogo não é apenas a capacidade de constranger os coveiros da Lava-Jato como também o poder de contestação aos aliados do governo que os mesmos manifestantes ajudaram a colocar no Palácio do Planalto. De musa do impeachment, a advogada Janaína Paschoal transformou-se em admiradora confessa do deputado Ivan Valente (PSol). No conjunto da obra, o cacife dos exércitos da Lava-Jato cresce pela impossibilidade de estes serem tratados com porrete.

Na medição de forças entre os poderes, a prisão de Eduardo Cunha é trunfo incontestável da força-tarefa de Curitiba. Sérgio Moro indeferiu perguntas dirigidas pelo ex-deputado ao presidente da República antes mesmo da manifestação de seu advogado. Não se sabe quem vazou as perguntas e com que objetivo, mas sua publicidade deixou claro o quanto o presidente da República tem a perder se resolver esticar a corda com a força-tarefa. É uma das explicações possíveis para a excessiva solenidade conferida por Temer à entrevista de domingo.

O abuso de autoridade é o segundo bode que o Congresso coloca na antessala das negociações com o Judiciário. O primeiro foi o endosso parlamentar ao cumprimento, por juízes e procuradores, do teto salarial da magistratura. Deltan Dallagnol e Carlos Fernando Lima não perdem oportunidade para relacionar o projeto de abuso de autoridade com o fim da Lava-Jato, mas até hoje nunca se manifestaram contra o auxílio-moradia para o Ministério Público.

O silêncio autoriza a interpretação de que a extinção do penduricalho afete os interesses da corporação que lideram. A categoria já arrancou do Executivo e do Judiciário este ano reajustes intragáveis num país com 12 milhões de desempregados. A força-tarefa não tem como se insurgir publicamente contra a extinção de benefícios sem a afetar a multidão de seguidores acumulados em dois anos e meio de Lava-Jato. Para evitar o dano, só lhes resta a política. E é dela que os procuradores se ocupam quando relacionam as votações no Congresso com o fim da mais popular operação da história do Judiciário.

O Congresso chega às vésperas da divulgação da lista do fim do mundo com uma blindagem ainda em construção, mas os parlamentares, ao contrário do que o teatro de domingo parecia sugerir, não entregaram o jogo. Se a anistia não vier pela interpretação benevolente da criminalização do caixa 2, ainda lhes resta a reforma política para pendurar o jabuti.

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