quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Opinião do dia: Carlos Drummond de Andrade

Carlos Drummond de Andrade: Organiza o Natal

Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe de 10 meses; imperfeitamente embora, o resto é Natal. É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta: 10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom.

Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas. Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o supra-realismo, justificado espiritualmente, será uma chave para o mundo.

Completado o ciclo histórico, os bens serão repartidos por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de descompostura nem de suicídio. O correio só transportará correspondência gentil, de preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem erudição nem pretensão, celebrando o Advento.

A poesia escrita se identificará com o perfume das moitas antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros? perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta à maneira de um livro.

A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação para ninguém.

Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz.

O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.

Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível.

A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã.

O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.

E será Natal para sempre.

Receita investiga doações de empreiteiras ao Instituto Lula

David Friedlander, Catia Seabra – Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - A Receita Federal abriu uma ação para fiscalizar a movimentação financeira do Instituto Lula, fundado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva após deixar o Palácio do Planalto.

A Folha apurou que o foco está no relacionamento da entidade com empresas que doaram recursos para manutenção do instituto, especialmente as envolvidas na Operação Lava Jato, que apura um esquema de corrupção na Petrobras. Nessa categoria, aparecem empreiteiras como Odebrecht e Camargo Corrêa.

A Receita quer checar a origem dos recursos destinados ao instituto, como o dinheiro foi gasto e se essas contribuições foram declaradas, tanto pelos doadores como pelo próprio instituto.

A investigação nasceu a partir de dados da área de inteligência da Receita, que colabora com a Operação Lava Jato. Não há prazo para sua conclusão.

Embora o instituto fique em São Paulo, a fiscalização foi aberta pela Demac (Delegacia Especial de Maiores Contribuintes) do Rio de Janeiro.

Há cerca de 20 dias, o instituto foi intimado a apresentar documentos fiscais e informações contábeis.

Tinha até o fim do ano para fazer isso. Na tarde desta terça-feira (22), no entanto, o presidente do Instituto Lula, Paulo Okamotto, esteve na Superintendência da Receita em São Paulo para pedir a dilatação do prazo.

À Folha, ele disse que não poderia cumprir o cronograma fixado pela Receita por causa das festas de fim de ano. Conseguiu mais 20 dias.

Essa foi a segunda vez que o presidente do Instituto Lula foi à superintendência do fisco em São Paulo para tratar do assunto. Semanas atrás, ele esteve na sede da Receita Federal para se inteirar do assunto.

Okamotto nega que a ação seja um desdobramento da Lava Jato. "É uma fiscalização normal. Querem saber se pagamos impostos direito", afirma.

Como todo processo fiscal, a averiguação no Instituto Lula é sigilosa. Por isso, a Receita não quis se manifestar.

Essa operação não tem ligação, pelo menos no primeiro momento, com a LILS Palestras e Eventos, empresa do petista para administrar as palestras para as quais é contratado.

Segundo seu estatuto, o instituto Lula, uma entidade sem fins lucrativos, tem "compromisso com o desenvolvimento nacional e a redução de desigualdades, visando o progresso socioeconômico do país".

O site da entidade aponta "a cooperação do Brasil com a África e a América Latina" como eixo de atuação.

"O exercício pleno da democracia e a inclusão social aliada ao desenvolvimento econômico estão entre as principais realizações do governo Lula que o Instituto pretende estimular em outros países", diz o site.

Para justificar essas doações, o instituto afirma que os recursos patrocinam a manutenção e desenvolvimento de atividades.

O Instituto Lula não divulga a lista de empresas das quais recebe doações, nem os valores que obteve.

Outro lado
Okamotto afirmou que a fiscalização aberta pela Receita Federal é um "procedimento normal" e não tem relação com a Lava Jato.

"A Receita quer saber se estamos pagando imposto direitinho. E estamos. Dei de barato que esse é um procedimento normal", disse Okamotto.

Diante da pergunta sobre a motivação da fiscalização, Okamotto descartou ligação com a Lava Jato e afirmou que não faria sentido que o instituto fosse investigado por conta de doações de empresas que já tiveram seu sigilo quebrado durante a operação, que é capitaneada por Ministério Público Federal e Polícia Federal.

"A Receita quer saber da contabilidade do instituto. Todas as empresas podem ser fiscalizadas no Brasil", minimizou o dirigente.

Okamotto disse que a Receita não informou que a operação Lava Jato seja o pano de fundo para fiscalização no instituto. "Fomos intimados a apresentar documentos sobre a contabilidade".

Sobre o pedido de mais prazo para apresentação de documentos e informações fiscais, Paulo Okamotto afirmou que, por causa das festas de fim de ano, não haveria tempo para reunir os dados que o fisco solicitou.

Ele reclamou do fato de o procedimento ter vindo a público, embora protegido por sigilo. "Não existe mais privacidade neste país".

Procurada, a Receita Federal alegou sigilo para não se manifestar sobre a fiscalização em questão.

A Odebrecht afirmou à reportagem, por meio de sua assessoria, que "faz contribuições a fundações e institutos, a exemplo do Instituto Lula, dentro de seu programa de apoio às iniciativas que promovem o debate de causas de interesse social".

Em junho, quando suas doações se tornaram públicas em decorrência da investigação da Lava Jato, a construtora Camargo Corrêa informou que "as contribuições ao Instituto Lula referem-se a apoio institucional e ao patrocínio de palestras do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no exterior".
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Outras suspeitas contra Lula
Amigo
José Carlos Bumlai confessou ter repassado empréstimo de R$ 12 milhões do Banco Schahin para o caixa dois do PT

Operação Zelotes
Filho do ex-presidente é alvo da PF por ter recebido R$ 2,5 milhões de lobistas interessados em benefícios ao setor automotivo

Delator
Empreiteiro Ricardo Pessoa, da UTC, disse ter entregue R$ 2,4 milhões de caixa dois à campanha de reeleição de Lula em 2006

Tráfico de influência
Lula é investigado por suspeita de favorecer a Odebrecht, que pagou viagens do petista a países onde fez obras financiadas pelo BNDES

Relator sugere aprovar contas de Dilma e contraria TCU

• Senador Acir Gurgacz (PDT-RO) divulgou nesta terça-feira seu parecer de 243 páginas pela aprovação das contas da gestão petista em 2014

Ricardo Brito e Isabela Bonfim - O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA - O relator das contas do governo da presidente Dilma Rousseff de 2014, senador Acir Gurgacz (PDT-RO), afirmou nesta terça-feira, 22, que seu parecer é pela aprovação das contas da gestão da petista "com ressalvas". Em um texto de 243 páginas, Acir contrariou o Tribunal de Contas da União (TCU) que, em outubro, decidiu por unanimidade recomendar ao Congresso a rejeição das contas de Dilma. A oposição apostava na eventual reprovação das contas para pressionar por um novo pedido de impeachment contra a presidente.

Apesar da divulgação do parecer, o texto só deve ir à votação na Comissão Mista de Orçamento (CMO) em março. Em seguida, ainda terá de passar pelo plenário do Congresso.

O senador incluiu três ressalvas em seu parecer: 1) a situação da economia durante o ano de 2014 impediu que houvesse o cumprimento de cenários econômico-fiscal traçados bimestralmente pelo governo em 2014, o que fragilizou a transparência da execução orçamentária; 2) as pedaladas fiscais não se caracterizam como "operação de crédito", por isso não é crime; 3) existência de mais de R$ 200 bilhões em restos a pagar (só em 2014, era de R$ 227 bilhões) sem qualquer programação de pagamento.

No caso das pedaladas fiscais, o principal ponto do processo do TCU, Acir Gurgacz argumentou que não houve desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Segundo ele, os atrasos nos pagamentos - a inadimplência - foram ou estão sendo quitados, sendo, dessa forma, uma mera questão fiscal. Isto é, Dilma pedalou para fazer frente ao cenário econômico adverso de 204. Ele classificou esse tipo de operação como "mera formalidade".

O relator disse que, além da manifestação do TCU, também e embasou nas defesas feitas pelo Banco do Brasil, pela Caixa Econômica, pelo BNDES, por juristas de universidades brasileiras, técnicos da Advocacia-Geral da União, consultores legislativos, entre outros.

Questionado, o senador rebateu o tribunal: "Por que tem que prevalecer a posição do TCU, que é um órgão que assessora o Congresso?" E insinuou que a Corte teria agido de maneira política quando votou em peso pela rejeição, logo após o governo ter recorrido ao Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar retirar o relator do TCU, ministro Augusto Nardes. Ele frisou que não é razoável incluir nas contas de Dilma todas decisões tomadas em cada ministério e órgãos do Poder Executivo.

"Enfim, como não encontramos o vínculo de responsabilidade da presidenta e como os argumentos do Tribunal não são relevantes o suficiente para levar à rejeição, nosso relatório conclui pela aprovação das contas, porém com ressalvas", disse Acir. "Meu relatório está menos politizado do que o relatório do TCU, deveria ser o contrário", completou.

O senador apresentou uma série de recomendações para serem seguidas, de agora em diante, pela administração pública federal, estaduais e municipais. Entre elas, defendeu a adoção de um cronograma de médio prazo para se pagar o passivos dos restos a pagar. Ele citou que, no caso das pedaladas fiscais, o governo discute com o tribunal um cronograma de pagamento.

"O passado não se conserta, não há como retroagir. Mas precisamos pensar nos futuros presidentes da república e governadores de estados", afirmou, ao citar que, em 2015, 14 estados governados pelos mais diversos partidos não cumpriram a meta fiscal. "Minha preocupação não é rejeitar ou aprovar as contas de um presidenta, estamos pensando no país", destacou.

Decretos - O relator chegou a defender que os decretos não numerados assinados por Dilma e pelo vice-presidente Michel Temer em 2014 não são ilegais. Ele destacou que havia previsão na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e da Lei Orçamentária Anual (LOA) do ano passado para se editar esses decretos sem a aprovação do Congresso.

Relator contraria TCU e pede aprovação das contas de Dilma

• Para senador aliado, ‘pedaladas fiscais’ não configuram crime

• Contas da presidente, que serão analisadas pelo Congresso após o recesso, são a base
do pedido de afastamento; Jaques Wagner fala em ‘renascimento do governo’

Contrariando orientação do Tribunal de Contas da União (TCU), o senador Acir Gurgacz (PDT-RO) apresentou parecer pela aprovação com ressalvas das contas da presidente Dilma em 2014, usadas como base para o processo de impeachment. Para Gurgacz, aliado do governo, as “pedaladas fiscais” não configuram crime. As contas serão apreciadas pela Comissão Mista de Orçamento após o recesso parlamentar. O ministro Jaques Wagner (Casa Civil) disse que a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de dar ao Senado o poder de rejeitar o afastamento de Dilma é o “renascimento do governo”.

Sim, apesar das ‘pedaladas’

• Relator vota pela aprovação das contas de Dilma de 2014, contrariando decisão do TCU

Cristiane Jjungblut - O Globo

-BRASÍLIA- Numa vitória do Palácio do Planalto e contrariando a recomendação do Tribunal de Contas da União (TCU), o relator das contas da presidente Dilma Rousseff de 2014, senador Acir Gurgacz (PDT-RO), apresentou ontem seu parecer pela aprovação, mesmo com as “pedaladas fiscais". A recomendação do TCU em relação às “pedaladas” foi o principal argumento da oposição desde o início do ano para pedir o impeachment da presidente. O parecer de Gurgacz foi apresentado na Comissão Mista de Orçamento, que deverá votá-lo até 11 de março.

Gurgacz refutou o parecer do TCU e recomendou em seu relatório a aprovação, com “ressalvas”, como em outros anos. O senador afirmou que “não pensou na presidente Dilma”, e sim nos futuros governantes.

Ele ainda defendeu a legalidade dos decretos assinados ano passado por Dilma e pelo vice-presidente Michel Temer, com a liberação de créditos extraordinários, afirmando que todos têm previsão na legislação orçamentária. Quando o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), afirmou que não aceitaria pedidos de impeachment baseados em atos ocorridos no mandato anterior, decretos iguais a esses, mas firmados neste ano, passaram a ser a base do novo pedido, aceito por Cunha.

Oposição diz que vai obstruir votação
A oposição classificou o parecer de “vergonhoso” e promete obstruir a votação.

— É uma anistia pontual para a Dilma, é jogar com a Dilma. Uma página repugnante da nossa história — reagiu o representante tucano na comissão, deputado Domingos Sávio (PSDB-MG).

— É uma vergonha que um senador contrarie o pleno do TCU. Vamos obstruir — acrescentou o líder da oposição na Câmara, deputado Pauderney Avelino (DEM-AM). Gurgacz fez críticas ao TCU, que recomendou a rejeição das contas de Dilma, devido às chamadas “pedaladas fiscais", no valor de R$ 57,013 bilhões. O senador disse que seu parecer foi técnico, e não político. Cabe ao Congresso, pela Constituição, aprovar as contas presidenciais. O TCU emite um parecer que, primeiramente, é analisado pela comissão de orçamento e, depois, pelo plenário do Congresso.

— Meu relatório é técnico e está menos politizado do que o do TCU, quando deveria ser o contrário. O TCU é um órgão assessor, quem vota é a Comissão Mista de Orçamento e o Congresso. A prerrogativa é do Congresso — disse o senador.

Perguntado sobre as consequências de seu parecer para o processo de impeachment, Gurgacz disse que a presidente poderia ficar inelegível com a rejeição das contas, mas não perderia o mandato.

— Tenho boa relação com a presidente Dilma e com a oposição. Não fizemos o relatório pensando na presidente, e sim no país. Além disso, a rejeição de contas causa inelegibilidade, e não perda de mandato, segundo a própria OAB — afirmou o senador.

Gurgacz é vice-líder do bloco de apoio ao governo no Senado, formado por PT e PDT. Seu partido tem seis senadores, e apenas dois são críticos ao governo. Ele também é líder do PDT no Senado e costuma frequentar o Palácio do Planalto. O senador disse que não foi ao jantar de Dilma com os líderes, na noite de anteontem, porque era aniversário de seu filho. O senador foi a Brasília ontem apenas para apresentar seu parecer, conforme tinha acertado com a senadora Rose de Freitas (PMDB-ES), presidente da comissão de orçamento.

Parecer deverá ser votado até 11 de março
O Palácio do Planalto já deflagrou uma estratégia para aprovar o parecer de Gurgacz, assim que o Congresso retomar os trabalhos após o recesso, na primeira semana de fevereiro. Os ministros mais próximos a Dilma avaliaram se haveria vantagem de se votar as contas ainda na atual formação da comissão, já que a sua composição será mudada no final de março, e concluiu que a atual formação é confiável — já aprovou as metas fiscais de 2015 e 2016 e o Orçamento da União de 2016.

Aliada do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e próxima da própria presidente Dilma, Rose de Freitas disse ontem que o parecer será votado até 11 de março. Rose estava ao lado do senador Gurgacz na apresentação do relatório.

— Vamos votar o parecer até 11 de março e antes de encerrar essa gestão, dia 30 de março — disse Rose.

O senador disse que o parecer teve o objetivo de não “engessar” a gestão dos governantes.

— Já há 14 estados que não cumpriram a meta fiscal em 2014, de vários partidos — afirmou o relator.

Integrantes da base festejaram a decisão de Gurgacz:

— O senador Acir restabeleceu a isenção necessária à análise dessa matéria, diferente do ministro José Augusto Nardes, no TCU, que politizou a análise das contas. Isso afetou a estratégia golpista da oposição — afirmou o líder do governo na comissão, deputado Paulo Pimenta (PT-RS).

Técnicos da comissão dizem que o principal ponto do parecer desconsidera as “pedaladas fiscais" junto a bancos públicos como operações de crédito, reproduzindo o argumento de defesa do governo. 

O TCU dizia que o atraso do repasse do Tesouro aos bancos públicos era considerada operação de crédito e que isso descumpriria a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). O parecer discorda: “como não encontramos o vínculo de responsabilidade da presidente, e como os argumentos apresentados pelo TCU não são relevantes o suficiente para levar à rejeição das contas, nosso relatório conclui pela aprovação das contas, porém com ressalvas”.

Três ressalvas foram sugeridas: falta de aderência do planejamento econômico-fiscal do governo com o que ocorria na economia; compromissos vencidos e não pagos (as “pedaladas”); e restos a pagar em soma vultosa de R$ 227 bilhões em estoque no ano passado.

— Não está de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal, mas não é crime, porque não houve contratação de crédito pela União. O governo não é o ordenador de despesas. Esses decretos assinados pela presidente ou pelo vice estão autorizados pela LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e pela LOA (Lei Orçamentária Anual). Não há ilegalidade, irregularidade — disse o relator, acrescentando: — Foram as questões econômicas que aconteceram no meio do ano, o que provocou uma readequação do Orçamento.

Judiciário x Executivo

• TJ causa mal-estar ao recorrer ao STF para ter salários pagos antes de outros poderes

Luiz Gustavo Schmitt, Vera Araújo - O Globo

Enquanto o Rio enfrenta uma das suas mais agudas crises na saúde, o Tribunal de Justiça passou de aliado — chegou a autorizar o uso de parte dos recursos dos depósitos judiciais para amenizar os problemas de caixa do estado — a uma pedra no sapato do governador Luiz Fernando Pezão. Ontem, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Ricardo Lewandowski, determinou que o governo estadual pague, no próximo dia 30, os salários do Judiciário referentes ao mês de dezembro, cerca de R$ 250 milhões. Com déficit nas contas, Pezão havia alterado todo o calendário de pagamento de salários dos servidores, que agora podem ser depositados até o sétimo dia útil de cada mês.

Inconformado, o TJ entrou com um mandado de segurança contra a medida no Supremo.

O pedido foi feito pelo presidente do tribunal, desembargador Luiz Fernando Ribeiro de Carvalho, conforme antecipou o blog de Ancelmo Gois, no site do GLOBO. A liminar concedida pelo STF teve como relatora a ministra Cármen Lúcia.

STF alega direito previsto em lei o TJ não informou o valor da folha, mas, como manda a lei, o Judiciário recebe 6% da receita corrente líquida do estado, que este ano está estimada em cerca de R$ 50 bilhões. Pelo cálculo, o valor da folha de dezembro deve ficar em torno de R$ 250 milhões.

Na ação no STF, Luiz Fernando afirma que o mandado de segurança estava sendo impetrado contra o estado em razão de “ato omissivo, consistente em não repassar o duodécimo orçamentário do Poder Judiciário fluminense no vigésimo dia de cada mês”. De acordo com a ação, esse é um direito garantido pelo artigo 168 da Constituição Federal.

O artigo prevê a mesma data de pagamento para a Defensoria Pública, o Ministério Público e o Poder Legislativo, que, no entanto, não entraram com medida de segurança.

A ação do TJ no Supremo azedou o clima entre Pezão e a presidência do tribunal. Afinal, havia um acordo firmado para a mudança no calendário de salários, que incluía ainda o Legislativo. Antes disso, um outro episódio já tinha incomodado o governo. Na sexta-feira, o desembargador Luiz Fernando suspendeu os efeitos de uma liminar, concedida pela 14ª Vara de Fazenda Pública da Capital, que determinava a transferência, do Banco do Brasil para o tesouro do estado, de 70% de todos os depósitos judiciais em que órgãos ou empresas estaduais fossem parte na Justiça do Trabalho. A decisão seguiu o entendimento de que a transferência poderia gerar sérios prejuízos a trabalhadores com processos contra o estado.

Antes disso, porém, o TJ havia contribuído para reduzir o rombo nas contas, liberando, em maio, R$ 6,8 bilhões do Fundo Especial do Judiciário para garantir o pagamento de aposentados e pensionistas do estado, que, na ocasião, já estava ameaçado.

Pezão se disse surpreendido
Ontem, Pezão disse ter sido surpreendido com a ação no STF.

— Eles (Judiciário) não estão entendendo a gravidade na área da saúde. Uma crise que está fechando hospitais. Eu não vou privilegiar desembargadores em detrimento de outros servidores do estado. Pedimos a mudança de data para para honrar nossos compromissos, inclusive com os funcionários da Justiça. Faltou sensibilidade — criticou Pezão, que ontem estimou em R$ 350 milhões os recursos necessários para contornar os problemas mais imediatos da saúde.

O presidente do Tribunal de Justiça negou ter havido insensibilidade.

— Fomos buscar o cumprimento da lei ao impetrarmos o mandado de segurança — disse. — Não é que sejamos insensíveis à crise da saúde. Somos guardiões da Constituição Federal. O problema da suspensão dos repasses dos royalties do petróleo, do não pagamento das dívidas do ICMS, realmente se agravou, e isso se reflete na queda da arrecadação. Mas não há qualquer relação do nosso pedido com a crise na saúde.

Ainda antes do imbróglio jurídico chegar ao STF, houve outro mal-estar entre os poderes. O estado havia determinado o pagamento do 13º salário de aposentados e pensionistas em cinco vezes. Mas o Tribunal de Justiça enviou ao Bradesco a folha para o pagamento integral dos valores devidos, que foi efetuado pelo banco. Com isso, o governo teve que repassar à instituição bancária cerca de R$ 24 milhões. A atitude do Judiciário acabou tendo reflexos também na Alerj e no MP estadual, que resolveram usar recursos próprios para pagar o valor integral do 13º de seus aposentados e pensionistas.

Secretário de Saúde sairá no meio da crise

• Felipe Peixoto, que quer concorrer à prefeitura de Niterói, teria tomado decisão para preservar imagem

Luiz Gustavo Schmitt, Carina Bacelar – O Globo

Em meio à crise e à falta de pagamentos que ameaçam emergências de hospitais do Rio, o secretário estadual de Saúde, Felipe Peixoto, deixará o cargo no próximo dia 31. Quando assumiu a função, em janeiro, era esperado que ocupasse o posto até abril de 2016. Nos bastidores, fontes do governo dizem que ele abreviou sua gestão para não ter a imagem desgastada, já que deve concorrer à prefeitura de Niterói no ano que vem. Ele nega:

— A minha saída estava acordada com Pezão desde que assumi. O governador até achou que conseguiria me demover da decisão, mas não vou abrir mão do meu sonho de disputar a eleição em Niterói.

A saída de Peixoto foi confirmada ontem pelo próprio secretário, pouco antes de o novo titular da pasta ser anunciado. Caberá ao ortopedista Luiz Antônio Teixeira Júnior contornar a crise a partir do dia 1º de janeiro de 2016.

Teixeira, de 42 anos, é atualmente secretário de Saúde de Nova Iguaçu, cargo que assumiu em 2013. Seu nome teria sido indicado por Sérgio Côrtes, ex-secretário estadual de Saúde. Formado pela Universidade Iguaçu (Unig), ele teria sido recomendado com base em critérios técnicos. Teixeira não é filiado a partidos políticos, sendo vice-presidente do Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. Peixoto, por sua vez, é filiado ao PDT e chegou a ser cotado para concorrer como vice de Pezão no pleito de 2014. Em nota, o novo secretário disse que tem pela frente um desafio “enorme”, mas que “a experiência como médico e gestor podem contribuir”.

Trabalho já começa amanhã
Mesmo que só assuma a pasta no ano que vem, o futuro secretário já começa suas atividades amanhã, quando vai a Brasília para um encontro de trabalho com o ministro da Saúde, Marcelo Castro, e técnicos da pasta federal. O objetivo seria pedir verbas. Ontem, ele já conversou com o secretário Felipe Peixoto e com o governador Luiz Fernando Pezão.

Não é a primeira vez que Teixeira pede recursos ao governo federal, segundo colegas. O diretor do Hospital Geral de Nova Iguaçu, Joe Cestello, lembra que o colega começou na Secretaria municipal de Nova Iguaçu da mesma forma.

— Começamos a agenda em Brasília, e isso incluiu a equipe técnica toda. Pedimos fiscalização aqui para mostrar que precisávamos de ajuda financeira — recorda Cestello. — Ele é um cara novo, acessível, que trabalha o tempo todo, despacha sábado e domingo.

Numa entrevista ontem, o presidente do Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj), Pablo Vazquez, classificou a atual crise da saúde como a pior da história do Rio. Acompanhado de representantes de conselhos de medicina, enfermagem e associações de classe, Vazquez anunciou que estão sendo estudadas ações judiciais contra quem eles julgam ser os responsáveis pelos problemas no setor. Segundo o presidente do conselho, duas organizações de saúde e a Fundação Rio Saúde poderão ser incluídas na ação, além dos governos municipal, estadual e federal.

— O déficit é de cerca de R$ 700 milhões. Relatamos o atual quadro ao ministro da Saúde (Marcelo Castro), que cobrou explicação dos secretários municipal e estadual de Saúde. Na última última sexta-feira, houve uma reunião entre eles, e ficou acertado que tudo seria resolvido. No entanto, a situação não se normalizou — disse Vazquez. — Estamos aflitos, pois existe a possibilidade de pacientes morrerem no Rio esperando na porta de hospital, sem médicos e sem remédios.

Sem previsão de recursos
Enquanto isso, a Secretaria da Fazenda diz que ainda não há previsão de pagamentos no setor de saúde. O titular da pasta, Julio Bueno, afirmou que “está lutando para tentar conseguir recursos”, mas que não há data para liberação de verbas para organizações sociais (OS) que administram hospitais.

Felipe Peixoto atribuiu a situação crítica na saúde à falta de repasses. Ele disse que este mês ainda não entrou dinheiro em caixa para pagar aos profissionais das organizações sociais, como técnicos e enfermeiros, que não receberam salários e nem a segunda parcela do 13º. Já os médicos que têm contrato de pessoa jurídica com as OS estão há quase dois meses sem vencimentos:

— Segurei a crise até 10 de dezembro. Gostaria de segurar até o final, mas, como não bateu repasse nenhum, os funcionários começaram a parar. A saúde precisa de no mínimo R$ 350 milhões mensais. No primeiro trimestre, cheguei a receber R$ 80 milhões a cada mês — disse o secretário, acrescentando que, diante da falta de insumos nas unidades de saúde, conseguiu que laboratórios doassem remédios.

PSB busca levar Alckmin para 2018, mas pela esquerda

Por Cristian Klein – Valor Econômico

RIO - O presidente nacional do PSB, Carlos Siqueira, ainda não confirma a negociação, mas já tem argumentos para rebater a ideia de que a filiação do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), para concorrer à Presidência da República, em 2018, pode representar uma guinada conservadora do partido socialista. "Isso não é uma via de mão única. Quem entra no partido também pode mudar", afirma Siqueira. O dirigente cita o caso do senador alagoano Teotônio Vilela (1917-1983). Apoiador da ditadura militar, saiu da Arena, legenda que sustentava o regime, e foi para o MDB, onde passou a defender a redemocratização.

Siqueira evita falar diretamente sobre as tratativas com Alckmin, num circuito do qual estaria participando o governador de Pernambuco, Paulo Câmara, e o prefeito do Recife, Geraldo Julio. "Quando se está conversando com alguém, com políticos de outros partidos, não é assunto para se conversar pelos jornais", despista.

Mas reafirma que o partido está construindo uma candidatura para 2018. Sem uma liderança nacional desde a morte do presidenciável e governador de Pernambuco Eduardo Campos, em meio à campanha do ano passado ao Planalto, o PSB quer entrar no páreo, ocupando seu espaço à esquerda - onde o PT, em crise, tende a desidratar. "Não queremos ser coadjuvantes ou caudatários de força política alguma", diz o dirigente.

Como preparação à candidatura de Campos, o PSB ampliou, nas eleições estaduais e municipais anteriores, seu leque de alianças, que era basicamente com siglas de esquerda, especialmente do tradicional aliado, o PT, com o qual rompeu em 2013. Aproximou-se do PSDB em vários Estados, como Paraná, Alagoas, Pará, Pernambuco, Amazonas e São Paulo, onde o presidente estadual do partido, Márcio França, é o vice de Alckmin.

Reeleito, o governador tucano não pode concorrer ao mesmo posto e seu objetivo principal é reunir forças para a corrida presidencial, mirando cargo que já disputou em 2006. No entanto, o senador mineiro e presidente nacional do PSDB, Aécio Neves, derrotado por Dilma Rousseff no ano passado, aparece na liderança das pesquisas e vem consolidando seu controle sobre o partido. Em cenários levantados pelo instituto Datafolha, e divulgados no fim de semana, Aécio variou entre 26% e 27% das intenções de voto. Quando substituído o candidato tucano, Alckmin aparece com 14%.

Os números reduzem a chance de Alckmin disputar o Planalto pelo PSDB e, com isso, o tucano encontra no PSB uma alternativa. A candidatura ainda poderia impulsionar Márcio França à sua sucessão no Palácio dos Bandeirantes.

Os projetos de Alckmin e PSB são coincidentes. E podem representar um golpe nas pretensões de Aécio, cujo desempenho contra Dilma foi impulsionado pelo voto paulista. No segundo turno, o senador obteve 30% de sua votação nacional em São Paulo.

O programa do PSB, afirma Siqueira, estará ancorado em ideias progressistas e no crescimento de sua base social, formada por "movimentos sindicais, de bairros, de negritude, LGBT e da juventude". É um campo de centro-esquerda no qual Alckmin não tem ligações. Pelo contrário, a gestão do governador tem sido marcada pelas divergências com movimentos sociais. O exemplo mais recente são os protestos de alunos contrários ao fechamento e à reestruturação da rede pública de ensino.

O dirigente do PSB afirma que, apesar de as políticas públicas serem conduzidas pelos eleitos, não haveria a possibilidade de o partido ser traído em seu programa, caso chegue à Presidência por um político de perfil conservador como Alckmin. "Ninguém vai dar pernada no PSB", afirma.

Siqueira cita o caso do ex-governador do Rio e deputado federal pelo PR, Anthony Garotinho, que concorreu à Presidência pela sigla, em 2002, como uma demonstração de que o PSB já se apresentava com independência, com projeto próprio em relação ao PT.

Siqueira defende que todas as quatro grandes conquistas sociais desde a redemocratização - SUS, universalização da educação básica, seguro-desemprego e previdência social rural - precedem a chegada do PT ao poder. Esses direitos, diz, estão ameaçados pela "visão estritamente liberal" que avança com a crise petista.

No Rio, porém, o PSB tem flertado com outro político de perfil conservador, o senador Marcelo Crivella (PRB), para concorrer à prefeitura da capital, e ser nome forte no Estado, depois da destituição do senador Romário da presidência do diretório regional.

Zander Navarro*: Mitos nacionais

- O Estado de S. Paulo

Nenhuma sociedade deixa de cultivar mitos, ilusões e autoenganos, pois produzem conforto íntimo aos indivíduos, assim como respondem às perguntas incômodas, em particular aquelas associadas aos mistérios do universo, da vida e da morte ou à imprevisibilidade da natureza. Por essas e outras razões, precisamos de mitos para trilhar o curso de nossa existência. Suas manifestações diminuem nas sociedades mais secularizadas e de maior escolaridade, mas continuam existindo. Mitos atribuem significado à aventura humana e, por isso, não são exclusivamente nefastos, criando imagens postiças da realidade e o domínio do falso. Mitos podem ser bem-vindos. Na época natalina, por exemplo, os mitos associados às festas e à passagem do ano invadem alegremente nossas mentes e determinam nossos comportamentos, do consumismo às esperanças relativas ao “novo ano”, como se a mera passagem de um dia para o outro determinasse algo essencialmente diferente.

É um curioso momento, quando a hipocrisia dos indivíduos atinge sua culminação, em meio às compras descontroladas e à infantilização do período.

No campo da política os mitos prosperam, pois a ânsia do poder tudo parece permitir. Curtas ilustrações: não seria mitológico afirmar que o PT é um “partido de esquerda” já que em nossos dias ninguém sabe realmente o que significa “ser de esquerda”? Essa é uma tradição política que nasceu em razão de uma via anticapitalista, pois foi a orientação que usualmente identificou o posicionamento à esquerda. Tornou-se caricatural no caso brasileiro, pois entre nós a “esquerda no poder” passou a significar apenas inflar irracionalmente o Estado, alocar cargos para os amigos ou organizar alguns esquemas nada lícitos de apropriação dos fundos públicos. Aliás, outro mito é aquele que corresponde esquerda a algo bom e virtuoso. Por que seria assim? Porque é tradição associada às classes desfavorecidas, o que atribuiria à esquerda uma virtù insuperável. Por isso, no primarismo binário que nos guia, a esquerda agregaria os excelsos e sua oposição, a direita, reuniria os canalhas da sociedade. E temos, então, uma sociedade em que ninguém quer ver-se à direita, consagrando outro mito.

Nos tempos brasileiros recentes, os mitos se multiplicam e nos atormentam. Cito dois deles, repetidos à exaustão com ares de suposta gravidade explicativa. Enganam a maioria dos cidadãos, que parece julgar que não seriam ocultações da realidade, mas fatos concretos. Resultado: todos papagueiam esses mitos. O primeiro deles diz respeito à apregoada queda da desigualdade social em nosso país durante os anos lulistas. É um mito surpreendente, pois tem sido enfatizado por economistas que ocupam posições de autoridade. A confusão é simplória e causa perplexidade que o argumento seja repetido sem o rigor que seria esperado, em face do nosso histórico de desigualdades.

Em síntese: o que se observa é um fenômeno parcial e restrito, de fato, à redistribuição forçada entre aqueles que recebem renda, especialmente do assalariamento, beneficiando os estratos de renda mais baixa, em detrimento dos detentores de renda elevada, que são tributados na fonte. As faladas “políticas sociais” apenas concretizam essa transferência, sem promover, contudo, a democratização efetiva da riqueza geral acumulada na sociedade. Em outras palavras, nos anos lulistas não houve nenhuma redução da desigualdade social entre nós, mas somente um abrandamento marginal da espantosa assimetria registrada na distribuição dos rendimentos captado pelos levantamentos de dados do IBGE. Como este não apura a riqueza em seu sentido abrangente e completo, especialmente a patrimonial e sua valorização ao longo do tempo, além de outros ganhos igualmente não quantificados, é praticamente certo, pelo contrário, que durante os anos deste século a desigualdade social se tenha elevado.

É inacreditável que economistas e outros estudiosos continuem reiterando o mito da parte e ignorando os fatos do todo, insistindo ainda com tolices relativas à formação de uma nova classe média e outras mistificações. Reduzir os salários nominais dos funcionários públicos, por exemplo, para transferir recursos aos mais pobres, como foi sugerido recentemente, é outra medida pobremente diversionista que não mudará a desigualdade social. Tornar sinônimos a distribuição de rendimentos e a desigualdade social é um erro crasso. A quem interessa o equívoco?

O outro mito que realço brevemente diz respeito aos famosíssimos “movimentos sociais”, entidades ubíquas, dizem tantos, que sempre “precisam ser ouvidos”. Mas, no Brasil atual, praticamente inexistem movimentos sociais. Estes têm um estatuto sociológico bem definido, respondem a determinadas privações sociais temporárias e, por isso, nascem e desaparecem. Os movimentos sociais emergiram nos anos de transição à democracia, mas, em sua grande maioria, beneficiados por fundos públicos, se burocratizaram em organizações políticas, quase todas abrigadas sob o guarda-chuva petista, que passou a instrumentalizá-las para atingir os seus objetivos partidários. É exasperante, portanto, ouvir levianas autoridades afirmarem que “consultaremos os movimentos sociais”, apenas refletindo mais uma dimensão de nossa imensa mitologia.

Precisamos confrontar e desconstruir o lado infesto dos mitos em nossa sociedade. É uma de nossas tarefas urgentes iluminar este lado sombrio e ameaçador das ilusões que cultivamos, a única via para o aprimoramento da qualidade da política de nosso país. Se for mantida a estrutura mitológica que nos oprime e confunde, serão muitas as dificuldades para chegar ao país que almejamos, o qual ecoaria a parte radiante dos mitos coletivos, aqueles que nos motivam para dias promissores e mais justos.

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* Zander Navarro é sociólogo e pesquisador em ciências sociais

Sergio Fausto: Não faltam razões para o impeachment

- Folha de S. Paulo

Impressiona a ligeireza com que os defensores da presidente Dilma Rousseff descartam a fundamentação do pedido de impeachment, feito com base em infrações à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Além de desconhecimento da legislação, essa postura revela incompreensão do significado da LRF não apenas para a estabilidade da economia do país como também para a qualidade da democracia brasileira.

As infrações legais foram sistemáticas, como demonstraram o TCU e o Ministério Público Federal. Em 2014, elas responderam ao propósito de facilitar a reeleição da presidente.

As "pedaladas" consistiram em forçar os bancos federais a cobrir com recursos próprios a conta de subsídios, principalmente a grandes empresas financiadas pelo BNDES, e o pagamento de benefícios sociais, enquanto o Tesouro mantinha dinheiro em caixa, simulando um resultado primário superior ao verdadeiro.

Tudo para evitar medidas inconvenientes do ponto de vista eleitoral, que se impunham, por lei, em face da deterioração da economia e de seus reflexos negativos sobre a arrecadação. Tal burla nada tem de corriqueiro.

O atraso nos repasses do Tesouro aos bancos estatais atingiu R$ 57 bilhões. A LRF foi infringida pelo menos duas vezes: o governo usou os bancos federais para financiar o Tesouro e o fez para se esquivar da obrigação de reduzir o gasto em face da frustração da receita estimada.

Ao contrário, o governo aumentou a despesa por meio de decretos ilegais, não aprovados pelo Congresso, alegando imaginários excessos de arrecadação.

Poderia, alternativamente, ter admitido a impossibilidade de atingir a meta fiscal e submetido ao Congresso projeto reduzindo o montante originalmente previsto. Mas isso também provocaria danos eleitorais. Preferiu deixar o encontro com a verdade fiscal para depois das eleições.

Só então a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) foi alterada pelo Congresso para legalizar a lambança fiscal. E que lambança: em dezembro de 2014, o país foi oficialmente informado de que o resultado primário do setor público não era um superavit de R$ 99 bilhões e sim um deficit de R$ 32 bilhões.

Repito, não se tratou de erro, mas sim de manipulação fiscal para facilitar a reeleição.

Em 2015, o Executivo continuou a editar decretos que, também sem aprovação do Congresso, autorizaram gastos adicionais com base em excessos imaginários de arrecadação. Embora com uma equipe econômica de maior espírito público e melhor qualidade técnica, o superavit fixado na LDO novamente virou deficit e a meta ali estabelecida só foi ajustada à realidade no apagar das luzes do exercício fiscal.

Não faltam, portanto, elementos para a responsabilização política da presidente. As infrações apontadas têm-se dado de forma continuada, sob instrução da mandatária.

Em 2014, em nome da reeleição e do "ousado experimento desenvolvimentista". Em 2015, na tentativa de remediar suas consequências desastrosas.

Ainda que sem igual dolo, as infrações verificadas em 2015 são uma extensão daquelas cometidas no ano passado. Além disso, embora o tema seja juridicamente controverso, o mais elementar bom senso recomenda considerar o(a) presidente atual responsável por atos cometidos em seu mandato imediatamente anterior, sobretudo quando a infração legal facilitou a própria reeleição.

O pedido de impeachment não é golpe. É um instrumento que a Constituição oferece para pôr fim a governos que desrespeitaram a confiança pública, transgredindo a lei para exercer o poder em seu benefício. Neste caso, infração continuada à lei orçamentária, tipificada como crime de responsabilidade na lei sobre o impeachment.
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Sergio Fausto, 53, cientista político, é superintendente executivo da Fundação Fernando Henrique Cardoso

Merval Pereira: O governo reage

- O Globo

A presidente Dilma termina o ano com boas perspectivas de resistir no cargo, diante da demonstração de apoio que o presidente do Senado, Renan Calheiros, vem lhe dando, e da divisão da oposição, que muda de estratégia a todo instante, transmitindo à opinião pública a ideia de que está atrás apenas de retomar o poder.

O voto do relator das contas presidenciais de 2014, senador Acir Gurgacz, aprovando-as “com ressalvas”, rejeitando a recomendação do Tribunal de Contas da União (TCU), tem valor apenas simbólico para o impeachment, já que a denúncia da oposição só foi aceita na parte referente a 2015.

Mas, mesmo assim, abre caminho para a alegação da presidente de que suas contas objeto da denúncia nem foram julgadas ainda, e de que as de 2014 estão em discussão no Congresso já com voto favorável do relator. Será preciso uma rebelião na Comissão Mista do Orçamento, e depois no Congresso, para condenar Dilma.

A avaliação do gesto de apoio pode ser feita pelo papelão a que o senador do PDT se submeteu, citando como “ressalvas” os crimes de responsabilidade de que Dilma é acusada pelo TCU: falta de aderência do cenário econômico-fiscal com o que de fato ocorria na economia; compromissos vencidos e não pagos; e restos a pagar em soma vultosa.

A oposição, em suas idas e vindas, a cada momento em que o impeachment parece mais difícil, joga suas fichas na anulação da eleição pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mas nada impede que retorne à tese inicial se os ventos melhorarem. Mas seus líderes não fazem nada para mudar as condições políticas para o impeachment; ao contrário, jogaram o vice Michel Temer ao mar na primeira análise superficial da decisão do Supremo.

Mesmo com todas as dificuldades decorrentes da crise econômica, e estando neste momento em minoria na Câmara, o governo vem conseguindo ter uma atuação política mais consistente na defesa do mandato da presidente Dilma. Não acredito que tenha sucesso ao final, mesmo que supere o impeachment, pois nada indica que a economia se recuperará nestes próximos três anos, fazendo com que a pressão política permaneça forte.

Mas, abandonando o caminho do impeachment, por considerá-lo “mais estreito” depois da decisão do STF, a oposição já dá por perdida a batalha e abre mão de tentar manter a maioria na formação da Comissão Especial da Câmara, que será eleita pelo voto aberto. E reconhece que o governo está readquirindo poder de barganha.

Também não participa do debate em torno das decisões do Supremo, permitindo que o senador Renan Calheiros atue como se tivesse poderes de barrar liminarmente o processo.

O ex-presidente do STF Ayres Britto, que sempre defendeu a tese de que o Senado não tem essa prerrogativa, acha que nos embargos de declaração o Supremo poderá recolocar a discussão nos trilhos, ressaltando que a Constituição, em seus artigos 51 e 52, define que compete “privativamente” à Câmara “autorizar, por dois terços de seus membros, a instauração de processo contra o presidente e o vice-presidente da República”, e ao Senado, também “privativamente”, processar e julgar.

Portanto, cada uma das Casas tem suas funções definidas como “exclusivas” pela Constituição, sendo impossível ao Senado assumir a tarefa de autorizar ou não o processo, assim como a Câmara não julga o presidente da República.

Também o advogado criminalista Cosmo Ferreira ressalta que o artigo 38 da lei 1.079 de 10 de abril de 1950 define que, no processo e no julgamento do presidente da República e dos ministros de Estado, serão subsidiários, naquilo em que lhes forem aplicáveis, “os regimentos internos da Câmara e do Senado, como o Código de Processo Penal”.

No juízo de admissibilidade a cargo da Comissão, tal qual ocorre no processo criminal, Cosmo Ferreira confirma que “não há espaço para a valoração da prova”. Se ela é robusta ou não, é matéria pertinente ao mérito, a ser enfrentada pelo plenário do Senado, que fará um julgamento, aí, sim, político.

Feliz Natal a todos. A coluna volta a ser publicada no dia 29.

Dora Kramer: Mudando de conversa

- O Estado de S. Paulo

Até então um interlocutor mais ou menos frequente do vice-presidente da República e de figuras destacadas do PMDB com vista à formação de uma aliança de sustentação a um governo de transição para o caso de a presidente Dilma Rousseff ter seu mandato interrompido, o senador Aécio Neves mudou o discurso.

O tom da conversa do presidente do PSDB agora é outro. De franco antagonismo – para não dizer hostilidade – em relação a Michel Temer em particular e ao PMDB de modo geral. Para ele, o que seria um aliado em prol do impeachment da presidente, passou a ser o parceiro do governo na criação e consolidação das crises política e econômica.

Em entrevista na segunda-feira à Folha de S.Paulo, Aécio deu a senha dizendo que os tucanos não devem “nem pensar” em cargos num eventual governo presidido por Temer. Há uma razão bastante objetiva para isso: na visão do senador mineiro, o PSDB não obterá ganho político algum na associação com governo de transição.

Pelo simples fato de que com isso perderia a condição de oposicionista – considerada essencial para a disputa de 2018 – e ainda colocaria o partido na obrigação de assumir a agenda alheia. No caso, a do PMDB que pretende concorrer à próxima eleição presidencial, ocasião em que os tucanos tentarão retomar o poder.

Mera quimera. Das duas, uma é a explicação correta para Dilma ter posto Nelson Barbosa no comando da economia: ninguém mais afinado às necessidades da crise aceitou o Ministério da Fazenda ou a escolha da presidente foi feita por afinidade de ideias.

Na primeira hipótese, o que se tem é um governo afundado em descrédito. Na segunda, um ministro que assume desacreditado por suas ações anteriores, totalmente em consonância com o pensamento equivocado de Dilma que anulou avanços dos últimos anos e completamente dissonantes do discurso de posse feito de encomenda para acalmar o mercado.

Como investidores trabalham com dados e fatos, a reação foi a alta do dólar e a queda da bolsa. É de difícil eficácia o apelo do novo ministro para que todos “fiquem tranquilos”. Joaquim Levy caiu porque foi tido como excessivamente rigoroso na exigência dos ajustes. Logo, não haverá mercado que se tranquilize nem economia que se estabilize se presidente e ministro não forem mais realistas que o rei posto para restabelecer a confiança.

Para isso não precisar mudar suas visões de mundo. Não parecem dispostos, contudo, pois continuam falando de maneira irrealista com a sociedade. A presidente quando promete crescimento sem argumentação sólida e o ministro quando anuncia uma reforma da Previdência inexequível, pois se não teve apoio para tal quando estava “por cima”, não será agora que a presidente conseguirá os votos necessários no Congresso.

Caos na Saúde. A Saúde pública no Rio de Janeiro está em situação de calamidade: hospitais fechados, cirurgias canceladas, salários atrasados há meses, carência (quando não ausência) de material para reposição de estoques e por aí vai.

Em 2005, o ministério da Saúde interveio nos hospitais municipais e tirou da prefeitura da capital a gestão dos recursos do SUS, alegando que a situação era “calamitosa”. Há, hoje, duas diferenças essenciais em relação àquela ocasião: a crise é muito mais grave, envolve também a administração estadual e o prefeito (César Maia), que na época era adversário do governo federal – hoje é um aliado (Eduardo Paes), integrante da tropa de defesa da manutenção do mandato da presidente Dilma Rousseff.

Elio Gaspari: Dilma aderiu aos oligarcas

- Folha de S. Paulo

Ao assinar a Medida Provisória que facilitou as operações das grandes empresas apanhadas em roubalheiras, a doutora Dilma abandonou a posição de neutralidade antipática que mantinha em relação à Lava Jato. Ela alterou uma lei de seu próprio governo e alistou-se na artilharia dos oligarcas que, pela primeira vez na história do país, estão ameaçados por um braço do Estado.

O mimo permitirá que empreiteiras cujos diretores foram encarcerados negociem novos contratos e obras com a Viúva. No mais puro dilmês, ela disse que "devemos penalizar os CPFs (as pessoas físicas), os responsáveis pelos atos ilícitos. Não necessariamente penalização de CPFs significa a destruição dos CNPJs (as pessoas jurídicas). Aliás, acreditamos que não exige". A frase de pouco nexo escamoteia o conceito de que as roubalheiras podem ter mais a ver com malfeitorias de pessoas do que de empresas.

As roubalheiras não eram dos executivos, eram da oligarquia empresarial. Prova disso está no fato de que nenhuma empreiteira queixou-se de seus executivos.

Os defensores do abrandamento dos acordos de leniência sustentam que a Lava Jato abala negócios, desemprega trabalhadores e inibe a economia. É um argumento parecido com aquele usado pelos defensores do tráfico negreiro no século 19, mas essa é outra discussão.

Até hoje nenhuma grande empreiteira pediu desculpas à população pelas mentiras que repetiu tentando proteger-se da Lava Jato. O papa Francisco pediu desculpas pelos casos de pedofilia na Igreja. A Volkswagen desculpou-se pelas fraudes ambientais. Os oligarcas brasileiros mentiram para a população e nada.

Fulanizando os casos das três maiores empreiteiras do país:

A Odebrecht sustenta que nada fez de errado. Em outubro de 2014, Marcelo Odebrecht, disse o seguinte: "como diretor-presidente da Odebrecht S.A. venho a público manifestar minha indignação, e de toda a organização, com informações inverídicas veiculadas na imprensa, em prejuízo de nossa imagem".

Também em outubro de 2014, a Camargo Corrêa disse que não havia "qualquer procedência" nas acusações feitas pelo Tribunal de Contas da União a respeito de obras superfaturadas na refinaria Abreu e Lima. Um mês depois, a Lava Jato encarcerou seu então presidente (Dalton Avancini) e então vice (Eduardo Leite). Neste ano, ambos passaram a colaborar com o Estado e a Camargo Corrêa aceitou uma multa de R$ 700 milhões.

A Andrade Gutierrez informou, em dezembro de 2014, que "todos os contratos da empresa com a Petrobras foram realizados dentro dos processos legais de contratação". Seu presidente (Otavio Azevedo) vendera uma lancha a Fernando Baiano por R$ 1,5 milhão, mas tratava-se de uma operação de CPF para CPF. Em junho, Azevedo foi preso e, em novembro, a Andrade Gutierrez passou a colaborar com o Estado e aceitou uma multa de R$ 1 bilhão.

Empresas desse tamanho não brincam com dinheiro. A teoria do CPF x CNPJ da doutora é empulhação. Se a Camargo Corrêa e a Andrade Gutierrez resolveram desembolsar R$ 1,7 bilhão, elas sabem que os delitos não foram cometidos por pessoas físicas.

A colaboração da Camargo e da Andrade é uma boa notícia. Não se pede muito, apenas que peçam desculpas por terem mentido, pois foi exatamente a arrogância e o faço-porque-posso que arruinou seus CNPJs e levou seus marqueses para a cadeia.

Luiz Carlos Azedo: A segunda frente

• A presidente Dilma Rousseff tenta reagrupar as forças governistas para afastar o impeachment logo na abertura dos trabalhos legislativos. O recesso paralisou os partidos de oposição

- Correio Braziliense

A apreciação do pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff pelo Congresso é uma batalha anunciada, inevitável, que ocorrerá mais cedo ou mais tarde, em razão da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o rito a ser seguido. Por mais polêmica que tenha sido a decisão, o processo foi iniciado e caberá ao plenário da Câmara, em última instância, aceitar ou não o pedido de afastamento. Caso seja acolhido, o mesmo terá que correr no Senado, ainda que o mesmo possa reverter a decisão da Câmara por maioria simples e só possa consumar o afastamento por dois terços dos senadores.

Por mais constrangedor que possa parecer, o encontro do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), e dos líderes da Câmara com o presidente do STF, Ricardo Lewandowski, previsto para hoje, servirá para esclarecer as dúvidas acerca da decisão, que invadiu as prerrogativas dos deputados ao “legislar” sobre a eleição da comissão especial que decidirá sobre a admissibilidade do pedido. Mas essa confusão paralisou o processo e beneficia o Palácio do Planalto, que ganha tempo para reorganizar suas forças no Congresso. Esse é o estágio em que estamos.

Cunha promove uma manobra atrás da outra para escapar da cassação de seu mandato pelo Conselho de Ética da Câmara, sua situação é esdrúxula. Principal protagonista do processo de impeachment, está com um processo de cassação por quebra de decoro parlamentar em curso e sua rejeição na opinião pública é bem maior do que a de Dilma. Não tem a menor chance de sobreviver no cargo, mas ainda pode dar um abraço de afogado na presidente da República.

Esse cenário está congelado a partir de hoje, a não ser que surja algum fato novo, ligado à Operação Lava-Jato, que possa afastá-lo do cargo, mas isso depende de decisão do plenário do Supremo. A única possibilidade legal seria a prisão em flagrante, como aconteceu com o líder do governo no Senado, Delcídio do Amaral (PT-MS). É improvável isso. O descongelamento do processo, portanto, somente ocorrerá em fevereiro, quando o Congresso e o Judiciário voltarem a funcionar. Mas aí o país já estará em clima de carnaval.

Salva pelo gongo, a presidente Dilma Rousseff tenta reagrupar as forças governistas para afastar o impeachment logo na abertura dos trabalhos legislativos. O recesso paralisou os partidos de oposição, cuja atuação é essencialmente parlamentar. Dilma, porém, mobiliza os movimentos sociais e tenta reconstruir as pontes do governo com os setores produtivos.

O ano de 2015 foi péssimo tanto na política quanto na economia. As projeções para 2016 não são melhores. A troca de ministro da Fazenda até agora significa pouco. A posse de Nélson Barbosa na pasta agradou as bases petistas, que defendiam o “Fora, Levy!”, mas não dissiparam as expectativas negativas que turvam os horizontes do mercado. Dólar em alta, ações em baixa, inflação acima de dois dígitos, salários atrasados e demissões em massa contrastam com o discurso do novo ministro, que promete ajuste fiscal e crescimento econômico ao mesmo tempo.

Crime eleitoral
Uma segunda frente, porém, preocupa o Palácio do Planalto. Até 15 de fevereiro, Dilma precisa entregar sua defesa ao Tribunal Superior Eleitoral, contra um pedido de cassação do PSDB por crime eleitoral na campanha de 2010. O vice-presidente Michel Temer precisa se livrar da mesma acusação, caso Dilma venha a ser condenada. Ambos poderão ser cassados e, nesse caso, haverá novas eleições.

As expectativas são de que o caso leve três meses para ser julgado, pois ainda depende de diligências. A ameaça mais grave é a suposta existência de vasos comunicantes entre o escândalo da Petrobras e a campanha de Dilma Rousseff, quando nada porque a gráfica do Sindicato dos Bancários de São Paulo utilizada pelo tesoureiro do PT, João Vaccari Neto, para lavar dinheiro de propina da Petrobras, foi a mesma que imprimiu farto material de campanha de Dilma. O ministro do STF Gilmar Mendes, um dos mais duros críticos do PT, assumirá a presidência do TSE por ocasião desse julgamento.

Em caso de condenação de Dilma e Temer, a legislação prevê que o presidente da Câmara assuma a Presidência até a realização de novas eleições e posse do novo presidente eleito. Esse é o sonho de consumo do presidente do PSDB, Aécio Neves (MG), hoje o candidato favorito em todas as pesquisas. Mas essa hipótese não desagrada à ex-senadora Marina Silva (Rede) e pode ser uma possibilidade de volta ao poder para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Rosângela Bittar: Verdades nada secretas

• Levy teve atenção integral do seu anjo da guarda

- Valor Econômico

O novo ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, foi recebido com ceticismo provocado pela guinada que certamente virá na retomada de sua matriz macroeconômica do gasto, do consumo, do subsídio, da pedalada e de tudo o mais que jogou a economia no abismo em que se encontra.

"O superávit tem que ser no nível necessário mas é necessário tempo para atingir esse nível". Com uma conceituação como essa e algumas outras platitudes, repetições de seu próprio discurso e frases de efeito, o ministro vem colocando em prática, agora no novo cargo para o qual teve pensamento e ação voltados desde sempre nas suas temporadas no governo, a máxima do PT em campanha eleitoral e em funções executivas: basta falar, fazer promessas, mostrar descompromisso explícito. Tudo se resolve-se no discurso.

Mas resolve-se de um lado só, no caso, do partido. Continuam a descoberto a sociedade, a quem o governo precisa se tornar crível, e o mercado, de quem precisa atrair investimentos, conter o dólar, impulsionar a bolsa e empurrar a mágica goela abaixo. O novo ministro da Fazenda, em sua primeira entrevista, tentou "tranquilizar" os eleitores de Dilma sobre sua própria credibilidade, suficiente para levantar a do governo, garantindo que o descrédito vem com a posse, depois, com os resultados, vem a confiança.

Mas está sendo desmentido até pelo governo. O líder na Câmara, José Guimarães, bradou numa lateral da posse, com entusiasmo: "O Brasil não precisa de mais mercado, mas de mais Estado. Não haverá retomada se ficar só nessa história de ajuste." Por que fazer o discurso contra o que sempre defendeu, o seu próprio modelo? Barbosa é uma esfinge.

Acha que é esse discurso que a sociedade e o mercado querem ouvir, o que é verdade, se fosse verdadeiro. O governo não faz a diferença entre uma coisa e outra, e acredita que todos acreditam nele ou têm que acreditar. Dilma e Barbosa, além do PT, sabem que as palavras são para o vento, a ação é outra coisa. O eleitorado, que demora um pouco mais para perceber o jogo político, está ainda procurando entender por que trocaram o ministro Joaquim Levy para defender e fazer a mesma coisa que o boicote do governo o impediu de realizar.

No discurso com que entronizou Barbosa no cargo, presenteando-o finalmente depois de uma luta renhida contra os ministros antecessores, ela recomenda fazer o que for preciso para retomar o crescimento, "sem guinadas e sem mudanças bruscas". Retomar o crescimento é discurso, mas quais seriam as medidas bruscas?

Ignorar que foi Nelson Barbosa quem derrubou Joaquim Levy é estar cego à realidade. Também é óbvio que o atual ministro saiu do governo, onde participou da gestão das pedaladas, que depois defenderia no Congresso e Brasil afora ao longo da condenação no Tribunal de Contas, porque não conseguiu afastar seus antecessores no comando, Guido Mantega e Arno Augustin, de quem discordava, imaginava-se à época, no conteúdo da formulação política. Hoje vê-se que talvez já fosse uma disputa de poder.

A presidente escolheu um ministro de linha contrária à sua, Joaquim Levy, por pressão do mercado e do ex-presidente Lula. Depois, Lula virou a casaca, para seguir os sindicatos, que reagiram aos ajustes na legislação trabalhista, e agradar o PT, que entrou agressivamente na campanha pró Nelson Barbosa, cujo descontentamento no posto do Planejamento era visível e mal conseguia esperar a queda do adversário.

Mesmo trabalhando fora do palanque principal, Barbosa atuou em tempo integral no Palácio do Planalto. Lutou até o fim para que suas teses, contra as do Levy, fossem preferidas. Junto à Comissão de Orçamento defendeu o superávit em bandas, que podia chegar a zero, quando Levy já anunciara demissão se não ficasse em 0,7%.

O discurso da CPMF, por sinal, ressuscitou ao toque de Nelson Barbosa, que levou a presidente a, com uma naturalidade surpreendente, recuar de toda a sua campanha eleitoral e pedir mais imposto à população.

Como Levy, Dilma, os chefes da Casa Civil e ministros das Relações Institucionais, Nelson Barbosa atribui ao Congresso a responsabilidade pela salvação do país. E o Executivo? O que pode fazer? O que fará? Nunca se votou tanto no Congresso como este ano, uma agenda quase integral do Executivo. Nunca o Judiciário agradou tanto ao Executivo, encaçapando seus argumentos políticos. Só do governo não se sabe qual a contribuição para resolver as crises. Não há nada que se possa fazer por portaria, por decreto, por medida provisória, por ação administrativa, por gestão, por negociação?

Envolver os Estados e municipios na pressão para rachar impostos, defender a reforma da previdência, turbinar as concessões, tudo o que se defende hoje já estava na mesa. Qual a diferença?

Era Nelson Barbosa quem boicotava a política que não o agradava, na presunção - acertada, como se vê - de que é o que deseja a presidente Dilma.

O governo poderia ter ganho tempo aplicando seu modelo logo em janeiro, quando Barbosa imaginava assumir a Fazenda. Mas preferiu fazer um teste para ver se saía do buraco rapidamente, o que resultou no desgaste de todos.

Todo o governo está com ordem de fazer a propaganda de que o novo ministro da Fazenda é o mais radical defensor do ajuste fiscal. Entre entrevistas e discursos, Nelson Barbosa está falando três a quatro vezes por dia, para repetir alguns mantras e ver se inspira fé. Jaques Wagner saiu também em socorro do ministro, bem como a própria presidente, que nunca falou tanto em equilíbrio de contas públicas como agora.

Wagner chegou a pedir que o ministro não seja julgado antes de começar. Mas já não estava no governo há tempos? Era Levy quem não o deixava trabalhar ou ele que não deixava Levy trabalhar? Palácio é máquina de virar as pessoas do avesso. Aqui mesmo neste espaço foi celebrada a primeira entrevista do ministro Jaques Wagner, como chefe da Casa Civil, em que estabeleceu a diferença com o seu antecessor pela cordialidade, paciência e disponibilidade para explicar com realismo as questões de governo, especialmente as crises. Na entrevista de fim de ano que concedeu ontem Wagner retomou sua condecoração de ministro normal. Engoliu a guerra pessoal de Nelson Barbosa, direcionou as responsabilidades todas para o Congresso, atacou o ministro que sai, dizendo que ambos têm competência técnica "mas economia não é ciência exata".

Os dois ministros, o que sai e o que entra, estão com sorrisos de felicidade incontida. É melhor rezar pelo que fica, vez que o que sai teve bastante atenção do seu anjo da guarda.

Vinicius Torres Freire: Sonhos de verão

- Folha de S. Paulo

Assim que voltar das imerecidas férias, esticadas até o Carnaval, meados de fevereiro, o Congresso vai lidar com o impeachment de Dilma Rousseff e com as reformas de Dilma Rousseff.

Até lá, o povo deve estar um tanto mais esfolado pela crise. Até lá, o PT, os movimentos sociais de esquerda e a esquerda do Planalto talvez já se sintam traídos pela nova equipe econômica. Caso não se sintam muito traídos, os donos do dinheiro grosso vão preparar a malhação do Judas. Governo entre cruz e caldeirinha.

O governo prometeu que em janeiro apresenta reformas: 1) aumento da idade mínima para a Previdência; 2) desmonte parcial da CLT; 3) lucro maior ou exigências menores de garantias para empresas nas concessões de infraestrutura; 4) simplificação de impostos; 4) algum petisco na área de financiamento de médio e longo prazos para empresas; 5) item antecipado, Dilma facilitou a vida das empreiteiras da corrupção, que poderão fazer contratos com o governo caso paguem multa, entreguem uns dedos e assinem boletim de bom comportamento futuro.

Os manifestantes que fizeram barulho na rua contra a deposição da presidente não vão gostar nada disso, óbvio. Gostarão menos ainda porque não haverá dinheiro para expandir, quiçá manter, programa social.

Convém lembrar que o ministro do Trabalho e da Previdência Social é Miguel Soldatelli Rossetto, soldado da esquerda do PT. A esquerda do Palácio do Planalto também espera "medidas de estímulo".

Pode bem ser que, entre festas de virada de ano e Carnaval, o povo médio da rua tenha esquecido de impeachment. Mas o que será feito de raiva, estupor, medo do futuro e sofrimento extra? Até setembro, a renda média do trabalho não havia caído pelo Brasil (em relação ao ano passado), nem o número de pessoas empregadas —setembro é o mais recente dado nacional disponível. O consumo caía, mas a renda não.

Nas seis maiores metrópoles, onde a política faz mais barulho, a situação já está bem ruim. Em novembro, a renda caía quase 9% em relação a novembro de 2015. É provável que a situação nacional de emprego e rendimento vá por esse mesmo caminho tenebroso, ainda mais porque a economia ainda encolherá no primeiro trimestre do ano novo. Os serviços sociais, saúde em particular, estarão ainda mais estropiados pela penúria de prefeituras, Estados e União.

Essa Câmara que tem pelo menos 42% de votos pelo impeachment vai aprovar as reformas de Dilma Rousseff? Esse Congresso indizível, quando não facinoroso, que passou a maior parte de 2015 arruinando o país e dinamitando o governo, vai fazer algo que preste e colaborar para aliviar a situação de Dilma Rousseff?

Pressupõe-se que o plano de reformas será algo mais que promessas de Ano Novo, que não virá enxertado de maluquices "desenvolvimentistas", no máximo uma gorjeta para a "esquerda". Também não se está a dizer que o plano seja bom, bastante, bem articulado ou que dê conta de compensar os anos de regressão de Dilma 1. Está se dizendo apenas que as promessas mínimas podem ser dinamitadas.

Caso o pacote pareça um monstrengo malfeito ou ainda um politicamente inviável, o "mercado" vai assar a nova equipe econômica ainda na Quaresma.

Míriam Leitão: A conta das pedaladas

- O Globo

A forma de pagar as pedaladas tem que ser a mais correta possível do ponto de vista fiscal e o governo precisa aproveitar para fazer um acerto de contas com o passado, mudando o rumo. É a melhor forma de voltar ao respeito à Lei de Responsabilidade Fiscal. Se for com saque da conta única do Tesouro não vai aparecer na dívida. Se for com aumento de dívida tem que haver contrapartida.

É importante para o novo ministro da Fazenda encerrar o ano com essa conta quitada porque, como ele disse, não se pode levar para 2016 um problema que se arrasta desde 2014 e que tanta celeuma criou. Mas não basta isso, porque são dívidas com três bancos e um fundo públicos que surgiram do pagamento, por estas instituições, de despesa primária do governo. É preciso livrar-se do pecado original que foi a mistura entre entes estatais.

A conta única do Tesouro existe para ajudar a rolar a dívida em caso de necessidade. Sacar da conta única, uma espécie de colchão, para pagar as pedaladas faria com que tudo isso não aparecesse na contabilidade da dívida pública. É pouco transparente. Parecerá uma solução milagrosa, e este assunto tão incômodo vai desaparecer.

Para a conta única vai a arrecadação das contribuições que o governo não usou para o propósito específico. Arrecadou com a Cide, por exemplo, e não usou na melhoria de estradas? Vai para a conta única.

Os recursos ficam em títulos, rendendo. O saldo da conta só pode ser usado para o fim específico para o qual aquele dinheiro foi arrecadado. O rendimento pode ser usado para pagar dívida pública. A pedalada, entretanto, é despesa primária.

Nas outras soluções que estão sendo arquitetadas também há problemas, por isso é preciso que haja uma estratégia fiscal para pagar as pedaladas, antes que elas virem aquela poeira varrida para debaixo do tapete. O risco é entenderem a ampliação da meta de 2015 para um déficit de R$ 120 bilhões como se fosse uma anistia fiscal.

Na engenharia da solução da pedalada é preciso criar as condições para que os erros não se repitam. O que houve em relação ao BNDES foi uma farra absurda, em que o Tesouro se endividou em nome dos brasileiros para transferir dinheiro para o banco que emprestou a juros subsidiados. Por outro lado, houve também as pedaladas em que o governo deixou de pagar o que deve ao banco. As transferências para que o BNDES emprestasse chegaram a R$ 500 bilhões. Os atrasos das pedaladas, um pouco mais de R$ 20 bilhões. Se agora vai haver um acerto de contas, então deve ser com o governo se comprometendo a reduzir a farra do dinheiro barato para empresários. Sobrou recursos do Programa de Sustentação do Investimento, em torno de R$ 30 bilhões, porque há pouca segurança para investir neste momento. Então, esse montante não pode simplesmente continuar no banco, precisa voltar ao governo.

Há vários programas de bandeira meritória, como o Minha Casa, Minha Vida, e de execução duvidosa. E em todos eles houve gastança, porque esta é a natureza deste governo. Portanto agora é a hora de pagar, trancar a porta para novos gastos, e aumentar a transparência da despesa. Do contrário, continuarão os erros que arruinaram as contas públicas, e continuará a ciranda do gasto descontrolado. Isso é verdade tanto no FI-FGTS, no Plano Safra, no Minha Casa, Minha Vida. O pagamento das pedaladas não pode ser um “cala boca", tem que ser uma mudança de rumo fiscal num governo que já provou ser desnorteado. Do contrário, o buraco continuará aumentando. É preciso ficar claro que o Brasil já está num atoleiro com o déficit nominal em 9% do PIB, déficit primário por dois anos seguidos e uma dívida crescente.

A falta de um fiscalista no governo é o mesmo que ficar sem o grilo falante cutucando as consciências. No Ministério da Fazenda é preciso alguém que sempre mostre os riscos de determinadas soluções que parecem fáceis. Se todos no governo pensarem que é possível acomodar, encontrar uma forma engenhosa para resolver o problema, o país caminhará mais cedo para o descalabro.

O ministro Nelson Barbosa não é conhecido pela sua preocupação fiscal, e o ministro do Planejamento Valdir Simão nem conhecido é. Isso alimenta os temores sobre o risco de se fazer do pagamento das pedaladas uma “neopedalada”.