terça-feira, 21 de abril de 2015

O governo que não foi - Ricardo Noblat

• Ulysses e Tancredo tocavam de ouvido e garantiram Sarney com vice

- O Globo

Em um dia qualquer de julho de 1984, no seu apartamento do Bloco D, Quadra 709 Sul, em Brasília, o senador Marco Maciel (PE), um dos líderes da dissidência do PDS, partido da ditadura militar instalada no país há mais de 20 anos, recebia amigos e companheiros de aventura que haviam decidido apoiar a candidatura a presidente da República de Tancredo Neves, 74 anos de idade, então governador de Minas Gerais.

A reunião no apartamento de Maciel serviria para sacramentar a candidatura a vice na chapa de Tancredo do senador José Sarney (MA), 54 anos, que renunciara, fazia pouco tempo, à presidência do partido da ditadura. Estavam ali, entre outros, os senadores Jorge Bornhausen (PDS-SC), Guilherme Palmeira (PMDB-AL) e Affonso Camargo (PMDB-PR). A campainha do apartamento soou e Everardo Maciel, economista amigo do anfitrião, foi abrir a porta.

O cheiro do fumo de cachimbo denunciou a entrada do senador Pedro Simon (PMDB-RS). Saudado pelos demais, Simon, que era muito ligado a Ulysses, derramou-se numa poltrona, cruzou os braços atrás da cabeça e anunciou em voz alta: "Temos problemas. É que no Rio Grande do Sul, achamos que Sarney é corrupto". Nem bem ele terminou de falar, Sarney levantou-se e gritou: "Renuncio, indignado, à minha candidatura".

O sempre calmo Maciel, dessa vez aflito, socorreu Sarney: "Minha solidariedade, minha solidariedade". Os demais senadores fizeram o mesmo. Espantado ou se fingindo que estava, Simon perguntou: "Fiz alguma coisa errada?" O estrago que ele fez só foi consertado depois de mais três ou quatro horas de reunião, e de se apelar por telefone a Tancredo e a Ulysses Guimarães, presidente do PMDB, que estavam na cidade. Sarney foi embora da reunião como vice de Tancredo.

Ulysses e Tancredo tocavam de ouvido. E, por sabedoria, às vezes desafinavam. Ulysses e Sarney, jamais. Atravessaram brigando o governo de Sarney. A todo o momento, Ulysses provocava Sarney para testá-lo. Até que ponto Sarney seria fiel à herança de Tancredo? Ou ele acabaria por traí-la quando se sentisse mais forte no cargo? No primeiro ano de governo, Sarney arranjou-se com os ministros escalados por Tancredo. No segundo ano, com os seus.

Um dos primeiros ministros a sair foi Francisco Dornelles, da Fazenda, sobrinho de Tancredo e homem da confiança dele. Tancredo dizia: "Meu primeiro decreto terá um único artigo dizendo assim: "É proibido gastar"". Queria dizer com isso que faria um governo austero, preocupado com o equilíbrio das contas públicas. Embora não fosse economista, Tancredo gostava de economia.

Por fraqueza política, forçado pelo PMDB de Ulysses a mostrar serviço, Sarney substituiu no Ministério da Fazenda o ortodoxo Dornelles pelo heterodoxo Dílson Funaro. E aí aconteceram fatos que jamais ocorreriam com Tancredo. O Plano Cruzado, por exemplo, que congelou preços e salários. Ele fez de Sarney um deus reverenciado pela maioria dos brasileiros, e deu ao PMDB sua maior vitória nas eleições de 1986 para os governos estaduais.

O Plano Cruzado 2, que arquivou o congelamento, foi um desastre que empurrou a popularidade de Sarney para baixo e a inflação para cima. Sarney, mais tarde, deixaria o governo com uma inflação mensal (eu disse: mensal) de 80%. Este ano, a inflação anual (eu disse: anual) ficará em torno dos 8%. A esquerda delirou quando Sarney decretou a moratória da dívida externa. Deu errado. Não tinha como dar certo. Tancredo deve ter-se revirado em seu túmulo.

Uma coisa que Tancredo faria, Sarney fez: a legalização dos partidos comunistas. Acuado por Ulysses, Sarney concordou com a instalação da Assembleia Nacional Constituinte para remover "o entulho autoritário", o conjunto de leis promulgadas pela ditadura. Não haveria hipótese de Tancredo bancar uma Constituinte "livre e soberana". No máximo, encaminharia ao Congresso uma proposta conservadora de reforma da Constituição.

Nada de turbulências, repetia Tancredo. Paz e democracia. Mário Henrique Simonsen, ministro da Fazenda de Ernesto Geisel, o penúltimo presidente da ditadura de 64, costumava alertar: "Cuidado! Não se metam com emendas à Constituição porque elas não concedem o direito de veto ao presidente". A Constituição parida pela Constituinte reduziu o mandato original de seis anos de Sarney para cinco. Poderia ter sido pior.

O PMDB ameaçou aprovar o mandato de quatro anos. Sarney avisou aos partidos por meio do seu ministro da Justiça, Paulo Brossard, que se assim fosse renunciaria ao mandato. Não bastou. Ele então usou os ministros militares para assustar os constituintes. O risco de um golpe bastou. Sarney governou por cinco anos. Nada ganhou a mais com isso. Desceu a rampa do Palácio do Planalto acenando com um lenço branco para as poucas pessoas reunidas ali por perto.

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