sábado, 25 de abril de 2015

Merval Pereira - Tempos de murici

- O Globo

Foi-se o tempo em que o Executivo tinha força para impor suas decisões aos estados e municípios, e, mais que isso, foi-se o tempo em que os aliados políticos aceitavam de bom grado as "pedaladas" do Ministério da Fazenda, temerosos de seu poder.

A tão falada repactuação entre os entes federativos, para equilibrar melhor as relações entre União, estados e municípios, acaba saindo aos poucos, mais devido à necessidade do que a um projeto bem negociado. A decisão do prefeito de São Paulo, o petista Fernando Haddad, de entrar na Justiça para obrigar o governo a cumprir a lei que muda a correção das dívidas de estados e municípios é exemplar nesse sentido. O prefeito do Rio, Eduardo Paes, já havia tomado o mesmo caminho. O fato de os dois terem avisado antes à própria presidente Dilma que tomariam esse caminho judicial só demonstra o novo estágio na relação do Executivo, fragilizado com governadores e prefeitos.

A alegação de que o governo federal não tem condições, neste momento de ajuste fiscal, de renegociar as dívidas, conforme prevê a lei sancionada no ano passado, não tem obtido receptividade "em tempos de murici, quando cada um cuida de si". Abrindo um parênteses, ando nos últimos dias com mania de citar velhos ditados populares, nem sempre de conhecimento amplo. A uma recente coluna dei o título de "Coisas e Loisas", e houve quem achasse que era um erro de digitação. A expressão popular significa simplesmente "coisas diversas". Já o ditado de hoje é muito usado nos meios políticos de Brasília, onde atuam muitos nordestinos. O muricizeiro é resistente à seca, e representa os que sobrevivem em condições de extrema dificuldade.

Pois, nestes tempos difíceis, não há muita gente disposta a se sacrificar sem justa causa, e um governo frágil quanto o de Dilma não instila receios nem mesmo nos aliados. Haddad contava com a redução da dívida para ganhar um fôlego na disputa que terá pela frente com a dissidente senadora Marta Suplicy, que está de olho no seu lugar na prefeitura, que um dia já foi dela. Paes, que não é do PT, embora seja um aliado de primeira hora, foi mais ágil e conseguiu uma liminar na Justiça para pagar a dívida de acordo com a legislação já aprovada. A dívida do Rio com a União caiu de R$ 60 milhões para R$ 28 milhões, e o prefeito pagou-a em juízo.

Fez até uma bondade, combinada com o ministro da Fazenda, Joaquim Levy: aceitou depositar a mais, com a garantia de que o governo federal se comprometeria a devolver a parte excedente daqui a um ano, quando entraria em vigor a lei sancionada. Eduardo Paes foi ameno ao dizer que apoia o governo no ajuste fiscal, mas duro ao afirmar que isso não justifica que o governo aja como "agiota", cobrando juro s além do mercado. Até a semana passada, o prefeito Fernando Haddad negociava com o ministro Levy uma alternativa para evitar um embate entre o município e o governo.

Mas até agora o governo não se sente em condições de garantir quando poderá aceitar as novas condições de pagamento, e Haddad perdeu a paciência, dizendo-se sem segurança jurídica para permanecer na inação. Como se sabe, o filho do presidente do Senado, Renan Calheiros, foi eleito governador de Alagoas, e a redução da dívida dos estados é fundamental para que tenha possibilidade de fazer alguma coisa além de pagar as contas. Este é outro embate entre interesses conflitantes de aliados poderosos que poderá trazer problemas para o governo. O recente protagonismo do Congresso, por bons ou maus motivos, já se reflete nas pesquisas de opinião, e pela primeira vez em muitos anos o Executivo não te m condições políticas para impor seus projetos. É uma mudança fundamental, que pode ter consequências políticas importantes.

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