domingo, 2 de novembro de 2014

Opinião do dia – Fernando Henrique Cardoso

O PT gostaria de ser o que o PRI foi no México do passado: um partido hegemônico atrelado ao Estado. O PT gostaria de ser hegemônico não só do ponto de vista político, mas também do ponto de vista das ideias. Ele usa o instrumental do Estado para modelar as imagens. Mas não consegue ser hegemônico. O PRI tinha muito mais votos que o PT. O PT sozinho não tem essa votação toda. Agora, caíram. São 70 deputados em 513. Mesmo essa questão de o Lula ser candidato... A oposição não deve temer o fantasma do Lula, não. Ele perdeu o prestígio. Onde ele indica, os nomes não ascendem.

Fernando Henrique Cardoso, sociólogo e ex-presidente da República. Entrevista em Época, 2 de novembro de 2014.

Reforma política: sete partidos dominariam a Câmara

• Fim da coligação para eleição de deputados e o estabelecimento da cláusula de barreira podem mudar Congresso

Mariana Sanches e Julianna Granjeia – O Globo

SÃO PAULO - O termo “sopa de letrinhas”, tão usado para definir o Congresso Nacional, pode estar perto de perder o sentido. A alcunha, justificada pela profusão de siglas partidárias com assentos na Câmara, vai se tornar obsoleta caso sejam aprovadas duas dentre as muitas propostas da reforma política, defendida pela presidente Dilma Rousseff em seu primeiro discurso pós-reeleição. A Câmara dos Deputados eleita em 2014 conta com 28 partidos, que dividem 513 cadeiras. Se aplicado à situação atual o fim da coligação para eleição de deputados, cinco partidos seriam automaticamente excluídos da casa. Em uma mudança ainda mais profunda, que incluiria o estabelecimento da cláusula de barreira, 182 cadeiras ficariam vagas, e apenas sete partidos permaneceriam com representação na Câmara (PT, PMDB, PSDB, PSD, PP, PSB e PR).

Tomemos por exemplo o PMDB. Pelo modelo eleitoral atual, o partido é um dos maiores credores destas eleições. Em 2014, elegeu 66 deputados. Mas, se fossem proibidas as coligações proporcionais ou se fosse instituída a cláusula de barreira para partidos, o PMDB contaria com 102 ou 89 parlamentares, respectivamente. Como é possível?

Esse caso ilustra a opacidade do sistema político brasileiro. Como o PMDB fez nada menos do que 166 coligações nos estados, os votos recebidos pelo partido acabaram repartidos entre os aliados, engordando a bancada de quem não foi votado e esvaziando a do PMDB, que havia sido escolhido pelo eleitor na urna.

— Há dois problemas nisso. O primeiro é que a coligação transfere voto sem que o eleitor tenha informação disso. Então a pessoa pode ter votado em um partido da situação, mas, pela composição da coligação estadual, acaba elegendo um deputado de oposição — explica o cientista político Jairo Nicolau, da UFRJ, que prossegue: — O segundo é que o modelo favorece a dispersão dos partidos. Não tenho conhecimento de nenhum outro parlamento no mundo em que haja 28 partidos com cadeiras. Essa fragmentação dificulta aprovação de leis e favorece chantagens e achaques.

A situação tem grandes chances de mudar no começo do segundo mandato de Dilma Rousseff, porque esse é um dos poucos temas em que tanto partidos da base quanto de oposição tendem a concordar. Estabelecido o fim da coligação, o número de partidos capazes de alcançar o quociente eleitoral e garantir representação na Câmara diminuiria. Mas, mais importante, apenas sete partidos, em vez de dez, teriam bancada superior a 20 deputados, o que facilitaria a composição de maiorias e, em tese, diminuiria a possibilidade de compra de votos.

Outra maneira de diminuir a fragmentação é instituir a chamada cláusula de barreira, um mecanismo criado pela democracia alemã. Nesse caso, partidos que não obtivessem 5% dos votos válidos em pelo menos nove estados perderiam o direito às suas cadeiras, que seriam redistribuídas aos partidos que superassem esse piso. Em um cálculo simplificado e hipotético, o número de partidos da Câmara eleita seria reduzido a um quarto da quantidade atual.

— Seria uma mudança draconiana para um sistema que sempre foi tão disperso e estadualizado. Correríamos o risco de provocar subrepresentações regionais — argumenta Jairo Nicolau.

Para o cientista político Fernando Abrúcio, da Fundação Getulio Vargas, além de demasiado severa, a cláusula de barreira produziria efeitos que poderiam ser atingidos, ao longo do tempo, apenas com o fim da coligação.

— A tendência é que os partidos comecem a se fundir. Os próprios líderes partidários já estão percebendo isso e se adiantando à reforma, porque já está claro que o sistema atingiu seu limite com tantos partidos — afirma Abrúcio.

Enfraquecidos após a última eleição, PSB, PPS, Solidariedade e DEM já começaram a discutir fusões. Todos farão oposição ao governo. O PSB elegeu 34 deputados, o Solidariedade, 15, o PPS, 10, e o DEM, 22.

PSB e PPS discutem uma união entre as duas siglas, que também poderia contar com o Solidariedade para formar um bloco. Já o DEM ainda estuda alternativas e pode se juntar a partidos nanicos.

— Numa análise preliminar, digo que o resultado da eleição, do jeito que aconteceu, fortalece a tese da fusão diante da necessidade de surgimento de uma nova força política por conta da divisão do país — defendeu nesta semana o deputado Júlio Delgado, da Executiva do PSB; o projeto de fusão do PSB, de acordo com ele, já vinha sendo discutido desde o fim do primeiro turno.

O segundo grande tema que deve ser abordado em uma proposta de reforma política é o financiamento de campanha. Nesse caso, não há consenso: PT e alguns aliados preferem um financiamento exclusivamente público, enquanto PSDB e demais opositores defendem a manutenção do sistema privado de financiamento — inclusive com empresas —, desde que estabelecido um teto para doações.

— O Estado já gasta fortunas com eleições, não pode aumentar o gasto. Não vejo razão para que o setor privado não dê dinheiro para campanha, desde que se crie um limite para evitar distorções e impedir que os muito ricos influenciem mais do que os menos ricos — afirmou o filósofo da Universidade de São Paulo José Arthur Giannotti, um dos ideólogos do PSDB.

O mais provável é que o resultado não contemple inteiramente nem a vontade da oposição nem a da situação. Isso porque, provocado pela Ordem dos Advogados do Brasil, o Supremo Tribunal Federal está julgando se empresas podem ou não doar para campanhas presidenciais. Embora o julgamento esteja suspenso, na contabilidade dos votos dos magistrados o financiamento eleitoral por pessoas jurídicas já foi considerado inconstitucional. É apenas uma questão de (pouco) tempo para que esse tipo de doação seja proibida.

Campanhas “franciscanas”
Campanhas eleitorais passarão a depender do Fundo Partidário e da boa vontade dos eleitores para se financiar. A aposta de Jairo Nicolau é de que passaremos a ver campanhas “franciscanas”, com recursos muito limitados:

— Os Estados Unidos proíbem doação de empresas desde 1907. Lá, os partidos se esforçam para dialogar com a sociedade e ganhar não só voto, como dinheiro. Doar para partido é visto como um ato político. Aqui não temos essa cultura política filantrópica, então os partidos terão que se esforçar para dialogar com a sociedade. A esquerda vai ter que voltar a fazer suas festas para arrecadar. A direita vai ter que reviver as quermesses — afirma Nicolau, que também rechaça a ideia de financiamento público exclusivo: — Nenhum país do mundo adotou isso. Tendo a suspeitar de ideias nativas. Se dependerem do Estado também para se financiar, os partidos vão virar as costas para a sociedade.

Vedete das discussões eleitorais, execrada por Marina Silva (PSB) e Aécio Neves (PSDB), a reeleição para o Executivo dificilmente será contemplada em uma possível reforma política. Além de exigir uma emenda constitucional, muito mais difícil de ser aprovada no Congresso do que uma lei ordinária, o tópico não conta com o apoio da maior parte dos governadores, diretamente atingidos pela mudança. Dos 27 governadores eleitos, 16 estão em primeiro mandato e certamente vão querer a chance de ter mais quatro anos para mandar.

Por outro lado, o cargo de suplente de senador deverá ser extinto. O suplente é o equivalente a vice do parlamentar, mas com frequência é um desconhecido da opinião pública e acaba exercendo a maior parte do mandato, já que é comum que senadores eleitos se licenciem para ser ministros ou secretários de Estado e deixem seu mandato. Apenas na última legislatura, cerca de 20% dos 81 senadores foram compostos por suplentes, políticos que nunca foram escolhidos pelo voto direto do eleitor.

Sociedade e Congresso discutem quatro propostas de reforma política

• Assunto está em pauta há 20 anos e só deu origem a mudanças pontuais

Chico de Gois e Paulo Celso Pereira – O Globo

BRASÍLIA - Alçada pela presidente reeleita Dilma Rousseff (PT) à condição de prioridade de seu segundo mandato, a reforma política é um assunto velho que, a cada legislatura, nos últimos 20 anos, sempre ressurge com a força de uma refundação do sistema político e termina em alterações pontuais. O único consenso, nesse período, é que é necessário fazê-la.

No momento, há pelo menos quatro propostas de reforma política em discussão no Congresso e na sociedade: a do grupo de trabalho na Câmara, que reuniu 18 deputados de diversos partidos; a do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE), que tem apoio da OAB e da CNBB; a do PT, com apoio da CUT; e a da presidente Dilma.

Tradicionalmente, esse debate se circunscreve ao Congresso, mas desde os protestos de junho do ano passado, políticos e entidades passaram a defender que se ouça diretamente a sociedade.

O PT e alguns movimentos sociais defendem que os eleitores escolham um grupo de representantes para uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva tratar do tema. A medida foi apoiada pela presidente Dilma logo após os protestos, mas ela recuou após receber críticas até do vice-presidente Michel Temer.

A partir de então, a presidente passou a defender a realização de um plebiscito para ouvir o desejo da população. A maioria dos parlamentares, por sua vez, defende que o Congresso formate uma proposta e que ela passe por um referendo popular — que aprovaria ou não as mudanças. O principal argumento é que a complexidade do tema inviabiliza uma consulta prévia.

Veja as principais propostas de reforma política:

Grupo de trabalho na Câmara

Voto distrital. Cada estado será divido em distritos que elegerão entre quatro e sete representantes. Assim, São Paulo deverá ter dez distritos, com sete vagas em cada. Esse ponto seria o único a passar por referendo

Voto se torna facultativo.

Coincidência de eleições. Para isso, os prefeitos e vereadores eleitos em 2016 teriam mandatos de apenas dois anos

Fim da reeleição.

Fim das coligações proporcionais. Exceto no caso de federação de partidos

Cláusula de barreira. Progressiva para o partido ter direito a funcionamento parlamentar e acesso ao fundo partidário e tempo de TV. O desempenho mínimo começaria em 3% dos votos nas eleições de 2018, 4% em 2022 e finalmente chegaria a 5% em 2026

Doações de empresas. Só serão permitidas diretamente para partidos políticos — não para candidatos individualmente

Sindicatos e entidades de classe. Passam a poder fazer doações eleitorais, desde que com base em arrecadação exclusiva para isso

Quociente. Para ser eleito deputado será preciso receber, no mínimo, 10% do quociente eleitoral — o que acaba com deputados eleitos com número irrisório de votos na “carona” de nomes populares

Filiação. Prazo mínimo cai de um ano para seis meses

Entidades e movimentos sociais

Votação para deputados em dois turnos.

Financiamento público de campanha.

Proibição de doação por parte de empresas.

Doações. Pessoas físicas podem doar no máximo até R$ 700 para os partidos

Bens. Ao registrar sua candidatura, os candidatos devem apresentar declaração de bens idêntica ao Imposto de Renda.

Plebiscito. Para a criação de municípios, concessões administrativas de serviços públicos, alienação de jazidas e mudança de qualificação de bens públicos

PT
Constituinte exclusiva. O PT está coletando assinaturas para encaminhar ao Congresso um Projeto de Iniciativa Popular que prevê a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte exclusiva para tratar da Reforma Política. São necessárias 1,5 milhão de assinaturas. Os eleitos para essa Assembleia não poderiam se candidatar a mais nada depois

Pré-lista. Votação definida pelos partidos. Dessa forma, o eleitor não votaria num determinado candidato, mas numa lista apresentada pelas legendas, que definiriam quem ficaria com as primeiras posições. O PT acredita que, dessa forma, os partidos políticos se fortalecem e evitam o personalismo

Financiamento público de campanha. Para dar condições iguais a todos os candidatos e evitar relações de interesse entre aquele que recebeu recursos da iniciativa privada e sua futura atuação parlamentar ou no Executivo

Cotas. Aumento obrigatório da participação feminina. O PT defende a paridade, com 50% de mulheres no Congresso

Presidente Dilma
Plebiscito. Para que a população decida cinco temas: financiamento público ou privado das campanhas, voto proporcional ou distrital, continuidade ou não da suplência para senador, fim ou não do voto secreto nas votações no Congresso (já foi aprovado o fim do voto secreto para cassações), continuidade ou não das coligações partidárias proporcionais

Fim do financiamento de empresas privadas.

Fim das coligações para eleições proporcionais.

Não há reforma que solucione toda a política

• Especialistas divergem sobre o que e quando mudar e como incluir a sociedade no debate, que não pode ser visto como remédio único

Lourival Sant’Anna - O Estado de S. Paulo

Em seu discurso da vitória, no domingo passado, a presidente Dilma Rousseff elevou a reforma política ao topo de sua agenda. Mas, entre especialistas, há divergências sobre os principais pontos da reforma política - financiamento exclusivamente público, lista fechada e voto distrital - e até mesmo sobre a conveniência de se fazê-la.

O tema, anunciou Dilma, seria objeto de plebiscito, como resposta às manifestações e aos escândalos de corrupção. A proposta foi recebida com frieza no Congresso. O PMDB, o maior aliado do governo, descartou a possibilidade de plebiscito, levando Dilma a recuar. Ao aceitar que a reforma seja aprovada em referendo, o governo devolve ao Congresso o controle sobre seu conteúdo e, principalmente, seu ritmo.

“Não existe nada de intrinsecamente ruim no sistema político brasileiro”, diz Luciano Dias, da CAC Consultoria Política, de Brasília. “A reforma organizada vem sendo feita pelo Judiciário.”

Entretanto, “toda vez que o Judiciário faz uma reforma que o sistema político não aprova, ele a derruba”, afirma Dias, lembrando o caso da verticalidade, em que o Supremo Tribunal Federal impôs coerência nas coligações estaduais e federais, e o Congresso votou depois uma lei permitindo que os partidos se coliguem como quiserem.

“Não convém estar mudando”, recomenda Leôncio Martins Rodrigues, especialista em representação política. “Para que um sistema ganhe legitimidade, é preciso tempo. Quando mudam rapidamente as regras do jogo, enfraquece a Constituição democrática. É preciso cuidado e não alimentar ilusões. Políticos não vão deixar de ser corruptos só porque mudaram as regras do jogo. Não há sistema eleitoral perfeito. Veja os problemas que tem o sistema americano.”

Momento. “Acho que este momento não poderia ser pior para uma tentativa de reforma”, critica Bolívar Lamounier, consultor e cientista político. “O País está muito dividido, e a pauta prioritária é a econômica. Soa como tentativa de entulhar a pauta para o Congresso se ocupar com reforma política e não acompanhar a questão econômica, o escândalo de corrupção na Petrobrás etc.”

Já outros especialistas acham que uma reforma é necessária e o momento, propício. “Desde junho de 2013, as manifestações apontaram para algo dessa natureza”, analisa Maria do Socorro Braga, da Universidade Federal de São Carlos. “A presidente tentou, mas o Congresso recusou.

Ela saiu vitoriosa da eleição, com forte apoio da militância do PT. Pode ser um bom momento.”

“Você tem aí uma certeza geral de que ajustes precisam ser feitos”, observa Marco Antonio Teixeira, da FGV. “Alguma resposta tem de sair neste momento, principalmente na questão do financiamento”, diz ele, referindo-se ao escândalo de corrupção na Petrobrás. “Se não mexer agora, o Supremo vai fazer mudança drástica.” O STF vai decidir sobre a legalidade de doações de campanha por empresas.

“Essa reforma vai sair porque a iniciativa, desta vez, virá do Supremo”, aposta Bruno Speck, da USP, que estuda financiamentos de campanhas. “Se a proibição do financiamento empresarial sair, não será mais possível ignorar esse assunto. Forçará os outros atores a tomar posição mais clara.” O Congresso tem duas opções, acredita Speck: ou muda a Constituição para permitir o financiamento pelas empresas - o que ele acha improvável, porque “pegaria muito mal” - ou reforma o sistema, limitando as doações de empresas ou instituindo financiamento exclusivamente público.

Consulta. Para Lamounier, o debate sobre se a reforma deve passar por plebiscito ou referendo é inócuo. “Dá na mesma. No plebiscito, pede-se antes à população autorização para o Congresso votar o projeto; no referendo, pede-se depois aprovação para matéria extremamente complexa votada pelo Congresso.”

“O povo não sabe o que está escrito na Constituição a respeito das instituições políticas”, diz o cientista político. Ele teme que se crie um “clima plebiscitário que abrirá caminho para coisas inaceitáveis, como o controle do conteúdo da mídia”.

“O apelo à soberania popular deve ser feito em momento de crise insolúvel”, analisa Roberto Romano, professor de ética da Unicamp. “Usar plebiscito para resolver problemas que podem ser resolvidos no sistema de representação comum é abusar do plebiscito. Referendo não é a mesma coisa, mas é quase.” Ele se preocupa com o risco de manipulação do resultado por meio da formulação das perguntas. “Nem da parte dos dirigentes nem da população tem condição de se fazer uma coisa prudente”, adverte. “Praticamente todo o sistema poderá ser modificado por um cheque em branco. Acho gravíssimo.”

“No cenário ideal, o plebiscito seria muito melhor”, opina Teixeira. “Não vejo como tomar uma decisão dessa sem incluir a sociedade.” Maria do Socorro explica que a ideia de consulta popular tem a ver com o fato de a base do governo ter saído da eleição com maioria mais estreita. “O Congresso nunca quis reforma”, constata a socióloga. “Reforma política sempre vai privilegiar um grupo, e quem propõe leva vantagem. Por isso a presidente joga para a população, para não ser afetada pela imprevisibilidade dos players.”

À espera de mais fisiologismo – O Globo / Editorial

• É difícil que o PT mude o estilo de fazer alianças que adota há 12 anos, e além disso a vitória apertada deve fragilizar a presidente nas negociações

Em condições normais, presidente reeleito não tem trégua depois da vitória. A rotina do expediente continua a mesma, até mais pesada, porque às questões do cotidiano se soma a agenda do próximo mandato — a necessidade de formular ajustes de políticas prometidos na campanha, administrar demandas para a reformulação de equipes etc.

No caso da presidente Dilma Rousseff, a passagem do primeiro para o segundo mandato é ainda mais complexa, porque a economia do país se encontra em delicada situação. Tanto que o discurso de campanha da candidata contra apertos ortodoxos a fim de debelar a inflação foi rapidamente esquecido, e o Banco Central pôde elevar os juros para 11,25%, por inevitável, diante de uma pressão séria nos preços.

A missão mais estratégica da presidente reeleita é mesmo na área econômica, com a indicação de um nome para o Ministério da Fazenda que sinalize credibilidade. É preciso, afinal, fazer ajustes para restaurar os fundamentos da economia, e assim, de imediato, evitar o rebaixamento da nota de crédito no país no exterior para aquém do “grau de investimento”.

Há outra agenda pesada à frente da presidente, a remontagem do inchado Ministério de 39 Pastas, uma quantidade de cargos talvez pequena para o Planalto atender a tantas demandas.

Isso se considerarmos que continuará em vigor a prática fisiológica do toma lá dá cá. Mas se este é o estilo de fazer alianças do PT, adotado nos últimos 12 anos, seria irrealismo prever mudança radical no segundo governo Dilma. A própria característica da vitória nas urnas — a mais apertada da história republicana, por apenas três pontos percentuais — deve fragilizar ainda mais a presidente nas negociações.

Os nove partidos da coligação vitoriosa elegeu 304 deputados, dois terços da Câmara. Mas, como aconteceu no primeiro mandato, a vantagem numérica nem sempre se traduz em supremacia política nas votações no Congresso. Tudo depende do tema, dos interesses específicos em jogo.

Para tornar mais duro este jogo, o PMDB, muito hábil em se posicionar à espera de trocas de guarda no poder — uma vitória da oposição em 2018 —, perdeu menos cadeiras na Câmara que o PT. Continua o segundo maior partido da Casa, com 66 deputados, cinco a menos que na atual legislatura, contra 70 do PT, a maior legenda, mas com a perda de 18 cadeiras. Com o fortalecimento do PSDB na Câmara — mais dez deputados, de 44 para 54 — e no Senado — neste, devido ao crescimento político de Aécio e à volta de Serra e de Tasso Jereissati, além da permanência de Aloysio Nunes —, o panorama parlamentar para o segundo governo Dilma não parece risonho.

São fatores que fragilizam o Planalto nas negociações para a distribuição de vagas e orçamento. Sem considerar a existência de companheiros demitidos pelas urnas em busca de bons empregos públicos. O segundo mandato já começou.

Confusão intencional - O Estado de S. Paulo / Editorial

A presidente Dilma Rousseff e o Partido dos Trabalhadores (PT) têm introduzido no debate público uma não pequena confusão, quando tratam do financiamento de campanha e corrupção.

Uma coisa é o fim do financiamento das campanhas eleitorais por parte de empresas, que está no momento em julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e já conta com 6 votos a favor da sua proibição. Outra coisa - porque sua causa não é o sistema atual de financiamento, mas o modo como se lida com a coisa pública - é a corrupção, cujas denúncias envolvem cada vez mais extensamente o PT e as empresas estatais por ele aparelhadas. Por que, então, confundir, tratando uma como causa da outra?

O último porta-voz dessa intencional confusão foi Miguel Rossetto, ex-ministro do Desenvolvimento Agrário e um dos coordenadores da campanha de Dilma Rousseff. Em entrevista ao jornal Valor, Rossetto afirmou: "Esse modelo (de financiamento pelas empresas) se tornou um grande instrumento que financia a corrupção no nosso país. Permanentemente eu assisto a bons empresários dizendo que se sentem escorchados por nós, políticos. (...) Cresce a compreensão de que grande parte da agenda da corrupção que envolve o Estado brasileiro é estimulada por um sistema de financiamento que liga de uma forma equivocada o interesse empresarial e a estrutura pública. A democracia não pode ser um momento de investimento econômico por parte de empresas e nem de agentes públicos".

Atribuir a culpa pela corrupção ao atual sistema, que permite que empresas financiem campanhas políticas, é um argumento falso. Todo e qualquer sistema é passível de corrupção.

Achar que a proibição das doações de empresas assegurará campanhas eleitorais eticamente puras não é ingenuidade - é uma tremenda falsidade. Além de isentar de culpa os que vêm praticando corrupção - seriam vítimas do sistema -, fazer essa associação é, por tabela, afirmar que todos os atuais participantes do jogo político são igualmente corruptos. E isso beira a calúnia.

Acabar com a possibilidade de que empresas financiem campanhas políticas é uma medida institucionalmente saudável, mas não pelo argumento de combate à corrupção. O motivo é simples: as empresas não têm direito a voto. E as suas contribuições para as campanhas influenciam o voto de quem detém o direito a ele - o cidadão. Permitir que empresas façam doações às campanhas eleitorais é atribuir-lhes um protagonismo político a que elas não têm direito. Os direitos políticos pertencem às pessoas físicas.

Outro legítimo motivo que sustenta o fim do financiamento das campanhas pelas empresas - o que não significa a extinção do "financiamento privado de campanha", pois é legítima a possibilidade de as pessoas físicas fazerem doações - é a relação que se estabelece entre empresas e governo.

Na prática, as grandes doadoras de campanha são as empresas com forte atuação em projetos públicos, ou seja, o dinheiro das campanhas acaba vindo indiretamente do governo. Essa relação não envolve necessariamente corrupção, mas tal proximidade de interesses também não é desejável numa democracia - e, portanto, é melhor evitá-la.

Reconhecer a legitimidade da proibição do financiamento das campanhas políticas por parte das empresas nada tem a ver com o argumento do PT, que na prática é uma tentativa de considerar inevitável a corrupção. Por que será que estão levantando esse tema do financiamento - que já está nas mãos do STF - logo agora, após as eleições vencidas por eles e nas quais receberam vultosas doações?

Até parece que isso é uma cortina de fumaça criada para esse momento, quando se começam a investigar atos concretos, de pessoas concretas e de partidos concretos, com base em denúncias cujas dimensões tornam o mensalão um caso de jardim de infância.

É um grave desserviço à democracia misturar coisas diversas, usando maliciosamente uma boa medida - o fim das doações de empresas às campanhas políticas - para tentar explicar ou mesmo justificar a corrupção. A democracia brasileira já amadureceu e não aceita esse tipo de jogada.

No vermelho – Folha de S. Paulo / Editorial

• Setor público acumula deficit inédito desde o Plano Real, o que tornará mais difícil a tarefa do governo de repor a economia nos trilhos

No conjunto de medidas impopulares para recuperar a credibilidade perdida e tentar colocar a economia nos trilhos após as eleições, a alta de juros foi apenas a primeira --e a mais fácil. Agora vem o desafio maior do governo: convencer a sociedade de que as contas públicas estão sob controle.

Na sexta-feira (31) tornou-se conhecido o rombo de setembro, R$ 69 bilhões, o maior da história quando se considera todo o setor público. No acumulado do ano, são R$ 224,4 bilhões (5,94% do PIB) negativos, incluindo os juros.

Quando se toma somente o resultado primário (a diferença entre receitas e despesas antes do pagamento de juros), o quadro é igualmente preocupante. Houve deficit de cerca de R$ 15 bilhões (0,4% do PIB) no período, algo inédito desde o início do Plano Real, em 1994.

Confirma-se o que já era sabido: será impossível atingir a economia prometida de R$ 99 bilhões neste ano. Nem mesmo o recurso à dedução de investimentos do PAC e desonerações, previsto em lei, bastará para deixar a conta no azul.

O governo precisará pedir ao Congresso a ampliação desses descontos, a fim de não descumprir a Lei de Responsabilidade Fiscal --pelo menos formalmente.

A questão mais importante, agora, diz respeito às metas de 2015. Com a arrecadação estagnada e considerado o buraco atual, parece impraticável o saldo primário de 2,5% do PIB estipulado para o próximo ano. O governo deve indicar um caminho suave para restaurar as contas, mas precisará mostrar convicção e retomar o compromisso com a transparência.

Tudo sugere que alguns impostos que não dependem dos congressistas voltarão, como a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide), incidente sobre combustíveis. Não se descarta, ademais, que o governo desista de prolongar a redução das alíquotas de IPI sobre automóveis para além de dezembro.

Como medidas tributárias mais amplas dependem do Congresso, o Executivo não pode contar com elas. Grandes cortes nas despesas soam inevitáveis, portanto.

Delineia-se, assim, um ajuste recessivo. Juros mais altos e orçamento austero devem acentuar, no curto prazo, a tendência de baixa na economia, o que era negado pela presidente Dilma Rousseff (PT) em sua versão candidata.

A aposta do governo é que o pacote ortodoxo restaurará a confiança do setor privado, destravando investimentos. Parece difícil, todavia, acreditar que os empresários serão tomados por súbito ânimo.

O arrocho pode comprometer ainda mais a geração de emprego, que já tende à estagnação. Se os postos de trabalho começarem a fechar, Dilma perderá sua última bandeira na economia.

Agora, querem destruir o juiz

• Os acusados no escândalo do petrolão se movimentam para impedir o avanço das investigações. O alvo principal é Sérgio Moro, o magistrado responsável pelo processo que está desnudando o maior caso de corrupção da história

Daniel Pereira e Robson Bonin – Veja

A história recente do Brasil tem algumas lições para o juiz federal Sérgio Fernando Moro.
Relator do processo do mensalão, o ex-ministro Joaquim Barbosa recebeu do PT a alcunha de traidor e foi atacado, de forma impiedosa, antes mesmo de decretar a prisão da cúpula do partido. Autor do pedido de condenação no caso, o então procurador-geral da República Roberto Gurgel foi transformado por petistas e asseclas em personagem de uma CPI, sendo ameaçado, inclusive, com um processo de impeachment. Os dois resistiram, e o Supremo Tribunal Federal (STF) condenou os mensaleiros. Descrita como "ponto fora da curva", a decisão, em vez de atenuar, agravou uma lógica perversa — quanto maior o esquema de corrupção, maior o peso de certas forças para engavetá-lo. Moro agora é quem carrega as responsabilidades que foram de Barbosa e Gurgel e também enfrentará poderosos interesses contrariados.

Nascido em Maringá, no norte do Paraná, Moro é um dos maiores especialistas do país na área de lavagem de dinheiro, obstinado no trabalho e discreto a ponto de a maioria de seus colegas desconhecer detalhes de sua vida pessoal, como a profissão da esposa (advogada) e a quantidade de filhos (dois). Aos 42 anos de idade e dezoito de profissão, é um daqueles juízes intocáveis, incorruptíveis, com uma carreira cujos feitos passados explicam seu comportamento no presente e prenunciam um futuro brilhante. Moro conduziu o caso Banestado, que resultou na condenação de 97 pessoas responsáveis pela remessa ilegal de 28 bilhões de reais ao exterior. Na Operação Farol da Colina, decretou a prisão temporária de 103 suspeitos de evasão de divisas, sonegação, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro — entre eles, um certo Alberto Youssef. No ano passado, um processo sob a responsabilidade de Moro resultou no maior leilão de bens de um traficante já realizado no Brasil. Foram arrecadados 13,7 milhões de reais em imóveis que pertenciam ao mexicano Lucio Rueda Bustos, preso em 2006. Com sólida formação acadêmica, coroada com um período de estudos na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, Moro também atuou como auxiliar da ministra do STF Rosa Weber no processo do mensalão. Com frequência, suas teses eram citadas por colegas dela nos debates em plenário.

Um roteirista de filme diria que o destino preparou o juiz Sergio Moro para o seu presente desafio — a Operação Lava-Jato, que começou localmente em Curitiba, avançou por quase uma dezena de estados e foi subindo na hierarquia política do Brasil até chegar à inimaginável situação de ter um ex-presidente e a atual ocupante do cargo citados por um peixe grande caído na rede. Moro começou investigando uma teia de doleiros acusados de lavagem de dinheiro, mas enveredou por um esquema de corrupção na Petrobras armado durante os governos do PT com o objetivo de financiar campanhas políticas e, de quebra, enriquecer bandidos do colarinho-branco. Lula teve o mensalão. Dilma agora tem o petrolão.

Como os navios, cuja capacidade é medida em toneladas de água que deslocam, um processo investigativo e punitivo como a Operação Lava-Jato tem sua importância definida pelo poder dos interesses que contraria. Moro comanda hoje o maior navio a singrar os mares da Justiça brasileira. Isso não ocorre sem provocar reações. É justamente delas que trata esta reportagem. VEJA descobriu que advogados, empreiteiras e políticos citados na Operação Lava-Jato se dedicam atualmente a divisar um plano para torpedear o transatlântico jurídico capitaneado por Moro — mesmo que isso implique a neutralização do próprio juiz.

A avaliação dos advogados é que, tecnicamente, pouco se poderá fazer para impedir que os culpados sejam levados a julgamento. "Já foram reunidas provas irrefutáveis de corrupção, e não temos mais como discutir o mérito. Nossa estratégia agora é encontrar falhas graves na condução do processo e tentar desqualificar o juiz", disse a VEJA um advogado que tem participado das discussões com outros defensores de acusados no petrolão. A busca de pontos fracos no casco da Operação Lava-Jato indicou que uma provável fragilidade, se bem aproveitada, pode fazer naufragar todo o processo. Esse ponto fraco está relacionado ao mais forte instrumento de investigação à disposição dos delegados da Polícia Federal e dos procuradores: a delação premiada. A ideia é conseguir a anulação da homologação pelo STF da delação premiada de Paulo Roberto Costa e impedir eventual aval à delação premiada do doleiro Youssef, que, por enquanto, está tentando convencer os investigadores de que vale mesmo quanto pesa. O advogado Antonio Carlos de Almeida Castro, que defende acusados de participar da corrupção na Petrobras, disse que Moro tinha virado "o grande eleitor da sucessão de 2014", insinuando que o juiz havia calibrado o calendário do processo para fazer coincidir as delações premiadas dos principais acusados com a campanha presidencial, de modo a atrapalhar a campanha de Dilma Rousseff, que também protestou contra o magistrado. O presidente do PT, Rui Falcão, encampou rapidamente a tese e acusou Moro de realizar divulgação irresponsável dos depoimentos. Falcão prometeu reagir.

Advogados dos acusados já têm pronta a estratégia. Eles pretendem denunciar Sérgio Moro ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão responsável por analisar a conduta de magistrados. Alegarão que ele promoveu um vazamento seletivo de um processo em curso na Justiça Federal, e esperam contar com a simpatia pela causa da corregedora do CNJ, a ministra Nancy Andrighi. A ideia é conseguir o afastamento de Moro das ações relacionadas ao caso. A Associação dos Juizes Federais do Brasil (Ajufe) já detectou essas movimentações. "Estamos em alerta para reagir a qualquer tipo de pressão ilegítima que venha a atentar contra a independência do juiz Sergio Moro", afirmou o presidente da entidade. Antônio César Bochenek. Os advogados pretendem buscar a anulação das delações premiadas de Paulo Roberto Costa e Alberto Youssef, se essa última for homologada, sob a alegação de que eles foram coagidos pelo juiz a assinar o acordo. Para obrigar o doleiro e o ex-diretor da Petrobras a ajudar nas investigações, Moro teria ameaçado prender parentes de ambos, afirmam os criminalistas. Coação é crime. Feita por juiz é ainda mais grave, mesmo que empreendida no benefício da apuração de corrupção da grossa. Um dirigente petista afinado com a estratégia de defesa disse a VEJA: "No futuro, o Paulo Roberto pode alegar que fez a delação sob pressão". A delação só é válida quando feita espontaneamente. Para um ex-ministro do STF ouvido pela revista, porém, seria difícil um juiz federal cometer esse deslize tão grave. Ele fundamenta sua opinião no fato de que o juiz não trabalha solitariamente em um caso desses, e para coagir um acusado teria de contar com a cumplicidade de muita gente. Diz o ex-ministro: "O juiz tem sempre gente em volta que o protege dele mesmo, e isso diminui muito o risco de erros de qualquer natureza".

Em outra frente, os advogados estudam a possibilidade de pedir a transferência das investigações para o Rio de Janeiro, onde fica a sede da Petrobras, o foco dos maiores desvios em apuração. Com a mudança de foro, aumentariam suas chances de neutralizar os delegados da Polícia Federal e os procuradores que fazem as investigações. "Sem o trabalho deles, esse processo dificilmente chegará ao fim a contento", diz uma das autoridades que trabalham no caso.

Em paralelo às alegações técnicas, corre a pleno vapor a coleta de informações destinadas a minar pessoalmente o juiz Sérgio Moro. Um dos planos é construir perante a opinião pública uma nova imagem do juiz — uma imagem desabonadora, obviamente, de quem atropela as mais básicas regras processuais. Munição nesse sentido já foi colhida. Em maio de 2013, o STF determinou que o CNJ investigasse Moro por abusos na condução do caso Banestado. Os ministros consideraram existir indícios de que ele havia se excedido ao emitir cinco ordens de prisão contra um doleiro, apesar de instâncias superiores já terem concedido habeas corpus a ele.

Na ofensiva será usada ainda uma decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região que proibiu o juiz de intimar por telefone um doleiro investigado. "Também vamos levantar coisas da vida pessoal do juiz", diz um advogado. A orientação é para verificar a evolução patrimonial dele e de seus familiares, além das relações políticas que eventualmente tenham. A mesma tática foi usada às vésperas do julgamento do mensalão. Naquela ocasião, os petistas divulgaram boatos de que a mulher do procurador Roberto Gurgel possuía imóveis em nome de laranjas e insinuaram que o ministro do STF Gilmar Mendes tinha despesas pessoais bancadas pelo contraventor Carlos Cachoeira. O tiro saiu pela culatra. Representados pela nata da banca nacional, sob a coordenação do ex-ministro Márcio Thomaz Bastos, vinte mensaleiros foram condenados à prisão depois que o tribunal confirmou o desvio de 153 milhões de reais dos cofres públicos para subornar parlamentares. Sob a mesma coordenação de Thomaz Bastos, a mesma banca trabalha agora para impedir a condenação daqueles que roubaram os cofres da Petrobras — e com as mesmas armas.

Na semana passada, a Polícia Federal anunciou a abertura de inquérito para apurar o vazamento de trechos do depoimento de Alberto Youssef. Ele contou que Lula e Dilma sabiam do esquema de corrupção, que o PT mantém contas secretas no exterior e que providenciou entregas de dinheiro a vários políticos, entre eles a senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR). A presidente anunciou que vai processar a revista — e não quem a denunciou. Lula seguiu o mesmo caminho: "A VEJA se definiu ideologicamente já há muito tempo. Ela odeia o PT, ela odeia os governos do PT". Sobre o teor da denúncia, confirmada também pelos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, nenhum comentário. A senadora, seguindo a estratégia, informou que seus advogados estão elaborando um recurso para questionar a delação do doleiro no Supremo.

As estimativas de desvios de recursos públicos no caso Petrobras são bem maiores do que no mensalão. A quantidade de suspeitos também. Se resistirem à pressão, o juiz Sergio Moro e o ministro do STF Teori Zavascki, responsável pela homologação das delações premiadas, pelo julgamento dos detentores de foro e pela análise dos eventuais recursos a ser apresentados pelos advogados, podem escrever um novo e importante capítulo no combate à impunidade. Nele, o mensalão certamente perderá o posto de maior escândalo de corrupção política da história do país — ou será realmente eternizado como um "ponto fora da curva".

Punição também no bolso?
Se os três envolvidos no petrolão que se comprometeram a devolver parte do que foi desviado cumprirem com a palavra, será a maior recuperação de recursos da história do Brasil. Ao todo, o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, o doleiro Alberto Youssef e o executivo da Toyo Setal Julio Camargo concordaram em retornar 165 milhões de reais aos cofres públicos. Desse valor, 70 milhões virão de contas de Costa na Suíça, 55 milhões das arcas do doleiro e os 40 milhões restantes do executivo.

Pela nova Lei de Lavagem de Dinheiro, de 2012, o valor recuperado de um caso de desvio de verbas volta diretamente para os cofres públicos. Uma parte pode ser encaminhada para as instituições que participaram da investigação, como Polícia Federal e Ministério Público, mas cada caso depende da decisão do juiz. Antes, era depositado no Fundo Penitenciário, da União.

São poucos os casos em que a Justiça e o governo conseguem recuperar o dinheiro desviado pelos corruptos. Um dos mais notórios foi o da fraudadora do INSS Jorgina de Freitas, cuja quadrilha desviou ao menos 500 milhões de dólares da Previdência nos anos 1990 por meio de um esquema que utilizava nomes falsos e de pessoas mortas para obter indenizações milionárias. Depois de quase duas décadas, já foram recuperados 111 milhões de reais – mais de 90% vieram de contas no exterior.

O mito da nação partida ao meio

• Com toda a tragédia, todas as reviravoltas e toda a paixão, a disputa de 2014 está sendo vista como marco na cisão nacional, mas é o contrário: num ritmo sólido e lento, próprio de países estáveis, o eleitor está-se afastando do PT, eleição após eleição

João Paulo Martins e André Petry – Veja

Uns poucos meses antes do pleito presidencial, qualquer estudioso da política diria que o PT estava irremediavelmente perdido. Nas democracias, os fatores que ditam uma eleição, ensinam os analistas, são três: estado e percepção da economia, popularidade do governo e tempo de permanência do partido no poder — quanto mais tempo, pior. A economia brasileira entrava em recessão técnica e o pessimismo crescia, a popularidade de Dilma Rousseff estava perto do fundo do poço e o PT completava doze anos no Palácio do Planalto, o mais longo período da nossa história democrática. Os três indicadores, portanto, favoreciam o PSDB.

Diz o cientista político Antonio Lavareda: "Os tucanos sabem, interna e reservadamente, que perderam pela campanha que fizeram, pelos erros estratégicos que cometeram". O PT explorou impiedosamente tudo que lhe caiu no colo. Aproveitou a adjetivação "leviana" do tucano à presidente para retratá-lo como um candidato desrespeitoso com as mulheres. Utilizou a derrota do PSDB para o governo de Minas Gerais para embalar o bordão que se revelou eficaz: "Quem conhece Aécio não vota em Aécio". Quando tudo conspirava para sua derrota, o PT virou o jogo. Por pouco, mas virou.

A boa notícia para o PSDB é que o partido encerra a campanha em ascensão. Seu desempenho cresce a cada pleito, enquanto o do PT cai. De 2002 para cá, o eleitorado petista encolheu 10 pontos porcentuais, de 61% para 51%, num ritmo gradual mas sem recuos. Na primeira vitória presidencial, Lula perdeu só em Alagoas. Em 2006, perdeu nos três estados do Sul, nos dois Mato Grosso, em Roraima e em São Paulo. Quatro anos depois, Dilma acrescentou Acre, Rondônia, Espírito Santo e Goiás à lista de perdas. Agora, foi-se o Distrito Federal.

Nos cinco maiores colégios eleitorais do país, o cenário é parecido. Em dois, São Paulo e Rio Grande do Sul, os tucanos estão à frente dos petistas. Entre os paulistas, a vantagem é de 29 pontos. Entre os gaúchos, são 7. Nos outros três, o PT ainda tem mais votos, mas vem caindo em todos. Em Minas Gerais, a dianteira petista reduziu-se para 5 pontos. No Rio de Janeiro, para 10. Na Bahia, a liderança é de estratosféricos 40 pontos, mas mesmo lá ela vem se estreitando. Mantida a tendência que se verifica desde 2002, o PT não faz o sucessor na próxima eleição. Talvez por isso, nem bem estava terminada a apuração, Lula já se insinuava como candidato em 2018, quando terá 73 anos.

A dança dos números, eleição após eleição, já confronta, por si só, a tese segundo a qual o Brasil saiu das urnas rachado ao meio — tese motivada, em parte, pelo resultado nacional tão apertado: 51,64% para Dilma e 48,36% para Aécio. Na página seguinte, o leitor verá dois mapas. O menor mostra o Brasil vermelho ao norte e azul ao sul, produzindo a ilusão cromática de um país partido ao meio. É um país inventado. O mapa maior, porém, retrata a realidade, mais complexa e nuançada: o eleitorado não se divide pela geografia, com sulistas de um lado e nordestinos de outro, mas pela situação socioeconômica. Por isso, Aécio, embora bem votado nas áreas ricas e avançadas, também tem votos no Piauí, ainda que poucos. Pela mesma razão, Dilma. candidata dos rincões pobres, tem votos em Santa Catarina, poucos, mas tem. Resume Lavareda: "Não se trata de um apreço setentrional ao PT ou uma aversão meridional ao PT".

Tome-se o caso da região mais populosa e rica do Brasil, o Sudeste. Nos quatro estados da região, Aécio conseguiu 25,5 milhões de votos, mas Dilma recolheu 19,9 milhões. Obviamente, foi um desempenho decisivo para a sua vitória. Na região Sul, em que Aécio venceu com 9,7 milhões de votos, 6,8 milhões de eleitores optaram por Dilma. O equívoco divisionista é traduzir a vitória de um candidato em determinada região como se toda a região tivesse votado no vitorioso. (Aos que andaram pregando a estupidez de dividir o país, faltou consultar os 26,6 milhões de eleitores do Sul e do Sudeste que votaram no PT. Ou os 8 milhões de nordestinos que escolheram o candidato do PSDB.)

A interpretação de que o Nordeste, populoso e pobre, é o responsável pela reeleição de Dilma faz parte das mitologias enganosas da política. Dilma ganhou porque teve um desempenho sólido — nunca inferior a 40% — em todas as regiões do país. O Nordeste lhe deu a votação mais vistosa, mas, sem o apoio razoavelmente expressivo dos eleitores do Sul e do Sudeste, Dilma não apenas perderia a eleição. Levaria uma lavada.

Os 20 milhões de votos que Dilma colheu nos nove estados do Nordeste reforçaram a ideia de que o Bolsa Família, o maior programa social do país, é a melhor explicação para o sucesso eleitoral do PT na região. Sem dúvida, o programa tem peso extraordinário na definição do voto dos mais pobres, tanto que há uma correlação visível: onde tem muito Bolsa Família, tem muito voto no PT. Mas sua influência é relativa. Em pesquisa feita entre os dias 25 e 29 de agosto passado, o cientista político Alberto Carlos Almeida perguntou aos eleitores se haviam melhorado de vida e, em caso positivo, o motivo da melhora. O nível de emprego ganhou, com 50% das menções. Só 24% apontaram as políticas sociais e 18%, o aumento do salário mínimo.

É fácil supor que o PT, tomando o lugar do poder privado, tenha virado no Nordeste o coronel do século XXI e o Bolsa Família seja seu voto de cabresto — e, parodiando Victor Nunes Leal, autor do clássico Coronelismo, Enxada e Voto, teríamos agora o "Petismo, Bolsa Família e Voto". A melhor explicação para o desempenho petista no Nordeste, no entanto, está na confluência de um conjunto de políticas sociais — do financiamento do estudo universitário às habitações populares — com um trabalho exemplar de marketing. Em poucos anos, o PT, que antes se identificava com a massa de trabalhadores organizados e as classes médias urbanas, perdeu contato com sua base original e, mais que depressa, propagandeou-se como defensor dos pobres, reencarnando um brizolismo extemporâneo. "O PT conseguiu criar para si a imagem do partido dos pobres", diz o cientista político Jairo Nicolau, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. "Na hora de apertar o botão da urna eletrônica, isso pesa para o eleitor da Baixada Fluminense, do Vale do Jequitinhonha." No Nordeste, além da imagem projetada pelo PT, entra em jogo o próprio desempenho da região, que vem sistematicamente crescendo mais do que a média brasileira.

Nos cinco primeiros meses deste ano, a economia nacional encolheu 0,6%, enquanto a economia nordestina cresceu 4%, segundo dados do Banco Central. Os investimentos federais na região são maciços. Em Pernambuco, no mandato de Dilma, são 8 bilhões de reais só para a habitação. No Ceará, perto de 9 bilhões de reais. São 4,5 bilhões no Rio Grande do Norte. De 2000 para cá, com a construção de sete universidades na região, o número de nordestinos no ensino superior saltou de 400 000 para 1,4 milhão. O progresso na região, aliado às políticas sociais, mostra que os nordestinos têm motivos sólidos para querer a reeleição de Dilma.

O Santo Graal da ciência política é descobrir as razões do voto. As teses sociológicas e psicológicas, nascidas entre os anos 50 e 70, acabaram cedendo espaço à chamada "escolha racional", corrente majoritária hoje. Por essa interpretação, o eleitor sempre usa a racionalidade na hora do voto, ainda que nem tenha plena clareza sobre isso. Ele calcula sua situação, compara com as opções e vota — com egoísmo, quando pensa só nele, ou com altruísmo, quando pensa nos outros. Parece simples, mas é um processo quase indecifrável de tão complexo. Será mesmo que o voto é racional? Será que o eleitor tem informação suficiente para decidir racionalmente? Mesmo sem essas respostas, é notável constatar que, geralmente, o eleitor tem ótimas razões para votar como vota.

Fernando Henrique Cardoso: "A oposição não deve temer Lula. Ele perdeu prestígio"

• O ex-presidente diz que a promessa de diálogo da presidente Dilma, por enquanto, são apenas palavras – e que é difícil passar uma borracha sobre as “infâmias” da campanha

Guilherme Evelin – Época

Após o anúncio da reeleição da presidente Dilma Rousseff, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso seguiu para o México para participar do 15º encontro do Foro Ibero-Americano, evento criado pelos escritores Carlos Fuentes e Gabriel García Márquez que, anualmente, reúne ex-chefes de governo e outras personalidades dos países ibero-americanos. Num dos intervalos do encontro, FHC conversou com ÉPOCA sobre o resultado da eleição, o papel da oposição diante dos acenos de diálogo da presidente Dilma e as perspectivas para 2018. Condenou a proposta de reforma política pela via do plebiscito e disse que o caminho correto é o referendo, desde que haja um acordo sobre o conteúdo das mudanças.

ÉPOCA – Como o senhor avalia a reeleição da presidente Dilma?

Fernando Henrique Cardoso – A vitória de Dilma foi bastante apertada, e Aécio chegou muito perto de ganhar. Isso mostra que o Brasil tem dúvidas sobre o melhor caminho. Do ponto de vista do PSDB e da oposição, é a primeira vez que chegamos tão perto, desde quando fui presidente. O Brasil tem força de mudança, e a própria presidente deve ter notado isso. O discurso dela pelo menos mostra isso.

ÉPOCA – Como recebe a promessa de diálogo da presidente?

FHC – Por enquanto, são palavras. E palavras, o vento leva. Temos de ver como ela agirá. Em junho, ela tentou negociar, mas não o fez de maneira apropriada e se precipitou. O mesmo parece acontecer agora. Ela fala em reforma política, mas não fala o que haverá nela. Fala em um plebiscito, quando o termo mais apropriado é referendo. Nós, da oposição, temos de manter a cabeça altiva e os olhos atentos. Importa o que ela fará, não o que ela diz.

ÉPOCA – Plebiscito sobre reforma política é inaceitável?

FHC – O próprio PMDB não aceita isso. Plebiscito é uma fórmula muito propícia à manipulação por parte do governo. É preciso haver primeiro um amplo debate político, para que as ideias amadureçam. Caso haja uma maioria no Congresso em torno de uma posição, submete-se então a questão a um referendo. O plebiscito funciona de outra forma. Se “plebiscitarmos” se deve haver pena de morte ou não, a resposta será sim. Se a maioridade penal deve ser reduzida, a resposta será sim. Aumentar o número de anos na cadeia? A resposta será sim. Tudo o que for mais autoritário normalmente encontrará uma resposta inicial favorável. A grande questão da democracia não é o voto, mas sim o modo como se chega ao voto. A maneira mais apropriada é o referendo.

ÉPOCA – É possível ter um acordo, então, em torno de um referendo sobre reforma política?

FHC – Primeiro, precisamos ver quais são os pontos da reforma política e a melhor maneira de fazê-la. Fora isso, há apenas palavras. Além disso, a campanha foi baseada em agressões pessoais. A respeito do Aécio, a respeito do Aloysio (Nunes Ferreira), a respeito da Marina (Silva). Fizeram reiteradas afirmações falsas a respeito do meu governo. Atribuíram a mim palavras que não disse sobre o Nordeste. Então, vamos passar uma borracha sobre tudo isso? Não! Tem de beijar a cruz. Fizeram uma campanha de ódio.

ÉPOCA – O acirramento da campanha permanecerá?

FHC – Espero que não permaneça. Mas, para ele não permanecer, estamos num jogo de xadrez. A iniciativa está com as pedras brancas. A movimentação é do governo, não nossa. Quem criou esse clima todo não fomos nós. Foi o governo. Quem falou que representamos o capital financeiro, que o Aécio é um playboy, que os tucanos quebraram o Brasil não fomos nós. Foi o governo. Se tivessem usado outra linguagem, apontando as diferenças reais que existem, seria possível conversar. Divergências políticas são sustentáveis. Com infâmias, não é possível conversar.

ÉPOCA – Aécio saiu com a melhor votação desde seu governo. Qual será, em sua opinião, o papel dele a partir de agora?

FHC – Ele deve valorizar o resultado, honrar a confiança depositada nele e ser o porta-voz da oposição no Congresso, fazendo um combate correto, sem agressões. O futuro de Aécio depende só dele.

ÉPOCA – Ele se tornou o líder natural do PSDB após a eleição?

FHC – Liderança não é um posto. É um exercício. Se ele exercer, será sim.

ÉPOCA – Por causa do petrolão, já há uma crise política contratada para 2015. Como a oposição reagirá às investigações?

FHC – Esse fato não é político, mas policial. E tem graves proporções. Um dos pontos importantes para o fortalecimento da democracia no Brasil é fortalecer as instituições de Estado: o Ministério Público, os Tribunais, a Polícia Federal. Na medida em que as instituições funcionarem, de forma adequada, cabe à oposição prestigiá-las. Não é a oposição que deve buscar os culpados e indiciá-los. As consequências políticas virão depois. Quem será atingido? Como a presidente reagirá? Ela não reagiu bem aos questionamentos sobre o Vaccari (João Vaccari, tesoureiro do PT). Ela fará como o presidente Lula, que finge que não aconteceu nada? Ou agirá como estadista? Estamos num momento delicado. Por enquanto, as coisas funcionam, mas ainda é cedo para falar na extensão delas. Suspeito que não seja apenas a Petrobras. Há os fundos de pensão, sabe-se Deus quanto a Eletrobrás está envolvida. Há um panorama que leva a crer que haja uma corrupção organizada, sistematizada e com bênçãos políticas. Isso é crime institucional.

ÉPOCA – A presidente disse que não deixará pedra sobre pedra.

FHC – O que aconteceu com a Erenice (Guerra, ex-ministra da Casa Civil)? Nada. Você lembra quando acusaram a Ruth (Cardoso) e a mim sobre os cartões corporativos do governo? Alguém apurou? Nada. Então, precisa ver se serão só palavras. Acredito na boa vontade da Dilma, mas tenho dúvidas se ela conseguirá escapar do sistema político em que está envolvida.

ÉPOCA – Em março de 2013, o senhor deu uma entrevista para ÉPOCA em que afirmou haver um “sentimento mudancista” na sociedade. Esse sentimento se manifestou nas eleições?

FHC – O sentimento mudancista se expressou. Não há dúvidas. Tanto que os dois lados usaram a palavra mudança por todo lado. Em São Paulo, vi um clima com similitude às Diretas Já! A classe média foi às ruas, numa demonstração de que o movimento começa a ganhar contornos políticos. Agora, o aproveitamento eleitoral do sentimento mudancista não foi generalizado. O ponto mais surpreendente foi Minas Gerais. Houve falhas. Não sei se do Aécio. Mas, da campanha, sim.

ÉPOCA – O senhor escreveu, há alguns anos, um texto em que afirmava que o PSDB deveria mirar as classes emergentes. A classe C não foi para Aécio na hora decisiva? O que aconteceu?

FHC – Não tenho dados para dizer o que ocorreu. A classe C de São Paulo, de Estados do Sul, do Mato Grosso, provavelmente, votou em Aécio. Mas, onde o governo tem influência, talvez a classe C tenha votado no PT. O fator determinante não foi a classe em si. Mas como ela se relaciona com o Estado. Onde o PSDB costuma ganhar e agora se reforçou? No Sul, São Paulo e em toda a zona que penetra Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rondônia e vai até o Acre. É a fronteira do agronegócio. É o Brasil moderno, que pulsa. Há presença do Estado, mas não é predominante. A divisão não foi entre os mais pobres e os mais ricos. Os mais pobres em locais modernizados votaram em Aécio. Agora, onde a máquina pública é mais influente, votaram no outro lado. Houve uma mudança na composição do PT. Ele nasceu no ABC, em São Paulo, mas agora perdeu no ABC e se enraizou em outras áreas do país, onde há dependência clientelística do governo. No passado, aconteceu uma coisa semelhante, entre MDB e Arena. O PSDB deve continuar a mirar nas classes médias emergentes. Isso é a modernização, o avanço, o progresso. Assim se cria uma classe mais empreendedora, mais autônoma, menos dependente do Estado.

ÉPOCA – O PT caminha para 16 anos de governo e já lançou Lula para 2018. Poderemos ter no Brasil algo semelhante ao que representou o PRI, no México?

FHC – O PT gostaria de ser o que o PRI foi no México do passado: um partido hegemônico atrelado ao Estado. O PT gostaria de ser hegemônico não só do ponto de vista político, mas também do ponto de vista das ideias. Ele usa o instrumental do Estado para modelar as imagens. Mas não consegue ser hegemônico. O PRI tinha muito mais votos que o PT. O PT sozinho não tem essa votação toda. Agora, caíram. São 70 deputados em 513. Mesmo essa questão de o Lula ser candidato... A oposição não deve temer o fantasma do Lula, não. Ele perdeu o prestígio. Onde ele indica, os nomes não ascendem.

ÉPOCA – Dilma disse que tentará mudar. O senhor acredita?

FHC – É difícil que alguém mude. Mas ela aceitou a noção do jogo político, que será desfavorável se continuar do jeito como está. Mas reitero: é preciso mudar com fatos, não com palavras.

Luiz Werneck Vianna: “Plebiscito sobre reforma política jogaria o país num labirinto”

• O cientista social vê um momento de virada no país, em que a democracia poderá se aprofundar. Tudo pode sair mal, no entanto, se as lideranças políticas não jogarem direito

Guilherme Evelin – Época

Um dos principais cientistas sociais do país, o carioca Luiz Werneck Vianna viu com preocupação a iniciativa da presidente Dilma Rousseff, logo no primeiro discurso depois de reeleita, de propor, mais uma vez, uma reforma política pela via do plebiscito. O caminho correto para uma reforma, diz Werneck Vianna, é pela via do Congresso Nacional. Se o governo insistir na tese do plebiscito, ele acredita que poderemos ir para uma situação parecida ao dos tempos do ex-presidente João Goulart, deposto pelo golpe de 1964. Nela, um Executivo enfraquecido tenta se fortalecer mobilizando setores da sociedade contra o Legislativo. A despeito dessa preocupação, Werneck vê um momento de virada na sociedade brasileira, em que a democracia poderá se aprofundar no país. Ele adverte, porém, que esse momento poderá se tornar “péssimo”, se as lideranças políticas não souberem jogar direito. Ele falou com ÉPOCA durante o encontro anual da Anpocs (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), em Caxambu (MG).

ÉPOCA – Como avalia os ensaios para o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff? É boa a proposta de reforma política por meio de um plebiscito?

Luiz Werneck Vianna – Essa proposta é inviável. Ela jogaria o país no labirinto. Nem responsável é, porque ela é inteiramente incapaz de dar uma solução ao problema. Você precisa de uma reforma política que faça as coisas andar e não de uma que paralise o país, que oponha um Executivo, mobilizador de setores da sociedade, a um Legislativo, pressionado a aprovar determinado projeto. Isso não vai a lugar nenhum. A via correta para a reforma política é a congressual.

ÉPOCA – Dilma saiu enfraquecida politicamente dessas eleições?

Werneck Vianna – Saiu.

ÉPOCA – Não é uma contradição que ela fale em diálogo e coloque a carta do plebiscito na mesa de negociação, quando ela está enfraquecida?

Werneck Vianna – Sim. É contraditório falar em diálogo e vir com uma proposta de reforma política via plebiscito. Se ela for nessa direção, atenção,eu estou falando na condicional,se ela for nessa direção, isso quer dizer que ela vai procurar apoio na sociedade para se fortalecer contra o poder Legislativo, contra a oposição. Lembra um pouco os tempos do Jango, com suas reformas de base. É o Executivo tentando realizar reformas contra o Legislativo.

ÉPOCA – Há diferentes diagnósticos sobre a influência das jornadas de junho de 2013 nas eleições. Qual é a sua opinião?

Werneck Vianna – Foi muito grande. A agenda dessa campanha, com a discussão das políticas públicas de saúde e principalmente de educação, derivou das manifestações de junho.

ÉPOCA – A polarização política entre PT e PSDB tende a permanecer?

Werneck Vianna – Acho muito difícil que nós nos convertamos numa estrutura bipartidária, mas a polarização pode permanecer, sim. Nos Estados Unidos, a polarização entre democratas e republicanos está aí desde sempre. No Reino Unido, entre conservadores e trabalhistas, também. Por que não pode permanecer no Brasil? Pode, sim. A questão é outra: seria desejável? No nosso caso, eu acho que não. A existência de outras forças políticas pode reforçar a ligação do sistema político com a sociedade civil complexa e heterogênea que temos. No mundo real, o brasileiro tem se mostrado avesso a estruturas políticas muito simplificadoras.

ÉPOCA – O que achou do acirramento de ânimos provocado por essa eleição?

Werneck Vianna – Esse acirramento não foi bom, porque ele não se deu em torno de questões substantivas. Ele foi muito personalizado, fulanizado. Isso é ruim, porque não educou a sociedade.

ÉPOCA – Como observador da nossa política há muitos anos, o que lhe chama a atenção nessas eleições?

Werneck Vianna – Nós estamos num momento de uma grande virada. A democracia brasileira criou condições de se enraizar. Mais agora do que em qualquer outro momento. Está claro para a sociedade, eu penso, que as reformas e as mudanças sociais derivam do processo eleitoral – e não de ações externas ao processo eleitoral. Vale dizer: as eleições no Brasil são uma forma superior de luta da agenda social. As pessoas vizualizaram, por experiência própria, que o caminho de conquistas sociais está no aprofundamento da democracia política.

ÉPOCA – Isso já não existia antes?

Werneck Vianna – Já existia. Mas pegou mais força, mais consistência, mais densidade.

ÉPOCA – Que tipo de consequência isso pode ter?

Werneck Vianna – A sociedade precisa se organizar, os partidos precisam melhorar suas estruturas para que o debate político ganhe mais consistência.

ÉPOCA – É um bom momento para o país, então?

Werneck Vianna – É um bom momento, do ponto de vista sociológico.Se será um bom momento de verdade, dependerá da ação dos atores políticos. Se eles jogarem de forma desastrada, pode ser um mau ou até um péssimo momento. Se insistirem nesse caminho da reforma política pelo plebiscito, os atores políticos estarão jogando no sentido de turvar e obstaculizar as belas possibilidades de aprofundamento da democracia, com que contamos agora.

Com o país na cabeça

• Aécio Neves tinha fortes razões para acreditar que venceria, mas reagiu rapidamente à derrota e se prepara para voltar a enfrentar Dilma como o líder da oposição

Bela Megale – Veja

O champanhe da comemoração já estava no gelo. No apartamento de Andrea Neves, irmã de Aécio Neves, em Belo Horizonte, garçons de um bufê contratado serviam uísque e cerveja aos mais de cinquenta convidados que esperavam ansiosos o momento de erguer o brinde da vitória. Estavam lá aliados do candidato tucano, correligionários de todo o país e amigos como o apresentador Luciano Huck. O otimismo dos presentes se devia à enxurrada de boas notícias que chegavam ao apartamento desde as 18 horas daquele dia 26. Boletins de urnas e seções eleitorais mostravam o candidato do PSDB com até 10 pontos de vantagem em relação à petista Dilma Rousseff — e isso com a apuração já na reta final. Em São Paulo, a informação era de que Aécio tinha conseguido alcançar a marca de 64% dos votos. O deputado e aliado Beto Albuquerque (PSB-RS), que foi vice de Marina Silva, ficou tão animado com as informações que recebeu sobre o Rio Grande do Sul que chegou chamando Aécio de presidente.

Pouco antes do anúncio do resultado, às 20 horas, o senador chamou para ficar ao seu lado a mãe, Inês Maria, a filha Gabriela e a mulher, Letícia. O prefeito de Belo Horizonte, Márcio Lacerda, colocou-se a postos para filmar com o celular a mensagem da vitória, que também seria registrada por um cinegrafista profissional. Mas a cena que as câmeras captaram foi a de Gabriela levando as mãos à boca, perplexa com os números que via na TV. Aécio deteve os olhos na tela apenas por uma fração de segundo. "Não dá mais", disse. "Faltam só 5%." Letícia abraçou o marido e uma salva de palmas tomou o apartamento. "Depois disso, foi pior que o 7 a 1 da Copa", resumiu um aliado. "Baixo-astral geral."

Ao menos da parte de Aécio, no entanto, o desânimo durou pouco. Sempre que vai à hoje famosa fazenda em Cláudio, no interior de Minas Gerais, o senador aproveita para se desligar da política. Não fala do assunto, não fica ao telefone e mantém distância da internet. Dedica-se apenas a aproveitar a companhia da família e passear a cavalo, sobretudo à noite. Na semana passada, porém, quebrou a tradição. Retirado na pequena cidade desde terça com a mulher e os filhos gêmeos de 4 meses, Julia e Bernardo, Aécio Neves não largou o celular. Falou sem parar com aliados e assessores próximos, acompanhou todo o noticiário, disparou mensagens convocando líderes do PSDB para uma reunião na quarta-feira com a executiva nacional do partido e gravou um vídeo que, divulgado nas redes sociais, deixou para trás o tom conciliatório do candidato vencido que discursou no domingo. No vídeo, Aécio disse estar "atento e vigilante para que cada compromisso da campanha seja agora cumprido".

Com a reação rápida, o tucano mirou dois objetivos: debelar a frustração de apoiadores e aliados com a derrota e aproveitar a mobilização remanescente da que foi registrada na reta final do segundo turno. Na mesma terça-feira em que Aécio divulgou seu vídeo, o líder do PSDB na Câmara, Antonio Imbassahy, se reuniu com os líderes Mendonça Filho (DEM) e Rubens Bueno (PPS) e o deputado Paulinho da Força (SD), representantes de partidos que apoiaram Aécio no segundo turno. O deputado Beto Albuquerque (PSB), que também integrou a coligação do tucano, não estava presente, mas conversou com o grupo por telefone. Na reunião, os representantes dos partidos combinaram articular uma candidatura conjunta à presidência da Câmara dos Deputados, representando o bloco oposicionista, e unificar estratégias para fazer frente ao governo.

Da parte do PSDB, por enquanto, as prioridades são lançar uma grande campanha de filiação para tentar captar os eleitores que não votaram no PT e coletar assinaturas para não deixar morrer a investigação sobre o escândalo da Petrobras na CPI que corre no Congresso — e com previsão de acabar neste ano. O partido também pretende trabalhar duro para evitar a dispersão do contingente de insatisfeitos que foi às ruas na reta final da campanha. Para isso, fincará o pé nas redes sociais, universo em que a sigla atua ainda timidamente, se comparada ao PT. Fernando Henrique Cardoso é, entre os tucanos, quem defende com maior vigor a necessidade de investir no segmento jovem.

No Senado, o plano do PSDB é fazer com que o seu ex-candidato à Presidência fale "menos no âmbito congressual e mais para a sociedade", de acordo com um deputado que atuou na coordenação da campanha, querendo dizer que ninguém verá o mineiro travando debates verbais da tribuna com adversários menos graduados. Aécio será preservado para assumir o papel reservado a ele: o de líder da oposição. No que depender do senador, e a contar pela sua movimentação nos últimos dias, a arena já não está vazia.

"O Brasil perdeu o medo do PT"

Pelo telefone, a voz de Aécio Neves em nada se parece com a do candidato vencido que, no domingo, ao assumir a derrota, discursou em tom abatido por pouco mais de dois minutos. O timbre mudou – é de novo o de alguém em combate. De sua fazenda em Minas Gerais, o tucano falou a VEJA sobre os erros da campanha, os planos para o futuro e o novo país que ele acredita ter saído destas eleições.

O senhor saiu desta eleição com a maior votação que um candidato do PSDB já teve no segundo turno, o apoio de 51 milhões de brasileiros e o título de "líder natural da oposição". Como pretende usar esse patrimônio?

Pretendo usá-lo para cumprir minha parte no que será a missão do nosso partido a partir de agora: ser a voz e o sentimento de mais de 50 milhões de brasileiros que demonstraram com a contundência do voto que estão cansados da incompetência e dos desvios éticos desse grupo que está no governo. Desvios éticos que na eleição ficaram ainda mais patentes como o modo de ser deles. O uso despudorado da máquina pública e o terrorismo com que o PT intimidou os eleitores são manifestações de uma mesma visão de mundo, a de que eles são donos do país e podem fazer impunemente tudo o que quiserem. Essa violência não tem paralelo na nossa história democrática. Foram cruéis com os eleitores ao mentir descaradamente para eles. Na baixeza para com seus adversários, o PT estabeleceu também um novo e degradante patamar. Primeiro o Eduardo Campos e depois a Marina Silva foram tratados não como adversários políticos com visões diferentes das deles. Foram tratados como inimigos da humanidade, como seres humanos moralmente defeituosos, maus e insensíveis. Uma eleição ganha dessa maneira diminui o Brasil perante o mundo e perante nós mesmos. A torpeza de métodos do PT depois se voltou contra mim com toda a força, o que me fez pensar com mais carinho em Eduardo e Marina, pessoas decentes, figuras públicas com contribuições sociais extraordinárias para o povo brasileiro, destroçadas sem dó pela máquina do PT. Mas essa campanha produziu um avanço importante. Enquanto o PT envenenava o horário eleitoral, surgia nas ruas uma reação espontânea de resistência cívica popular. As pessoas retomaram as ruas, redescobriram a coragem. Finalmente, depois de tantos anos, o Brasil perdeu o medo do PT.

Esse sentimento cívico que o senhor despertou vai durar quanto tempo?

A vitalidade que esta campanha injetou nas pessoas é uma força que não se dissipará facilmente. Ela vai nos manter unidos. Esse Brasil sem medo do PT vai ser percebido logo pelo governo.
A sociedade está muito mais atenta, vigilante e serenamente imune ao discurso raivoso dos petistas. A oposição saiu revigorada desse processo. Estou pronto para assumir meu lugar nela.

Sem trégua nem lua de mel, como disse o senador (e candidato a vice na chapa tucana) Aloysio Nunes?

Os 51 milhões de brasileiros que se puseram na oposição nas eleições esperam que seus representantes no Congresso sejam vigilantes e firmes. Que se oponham ao governo, e não ao país. Seremos firmes porque nossos eleitores reprovaram nas umas os métodos do PT, sua visão de mundo, seus desvios éticos, a forma como compõe o governo e a forma como governa. Não vamos permitir que o governo desvie a atenção dos brasileiros do maior escândalo de corrupção da nossa história, o da Petrobras.

A presidente Dilma declarou na semana passada que pensa em "chamar para conversar" o senhor e Marina Silva. O senhor vai conversar?

Antes de qualquer coisa, temos de aguardar para ver que cara terá esse governo e que caminhos ele escolherá. Depois disso, claro, podemos pensar em conversar sobre propostas que tenham claro e efetivo efeito positivo para o Brasil. Mas ir lá só para tomar um café não faz sentido. Por tudo o que a convivência com ela nesta campanha mostrou, não seria sequer agradável.

Como recebeu a notícia da derrota?

Houve um primeiro momento de perplexidade com o resultado. Porque o clima era de vitória, era de mudança... Mas minha frustração não foi propriamente por ter perdido a eleição, mas por ter chegado muito próximo de poder dar ao Brasil um novo projeto de futuro, mais generoso para com a sociedade, mais qualificado na economia, mais ousado na política externa. Eu me preparei pessoalmente e em termos de equipe para isso. Tomo emprestada a frase da Marina sobre "perder ganhando". Fizemos uma campanha digna, honrada, que fez com que pessoas que não se conheciam se abraçassem nas ruas e voltassem a acreditar que podem ser protagonistas do seu destino, do seu futuro. Isso tudo me deu a certeza de que perdemos ganhando. Já a nossa adversária, pelo nível da campanha que fez, ganhou perdendo. E o Brasil vai perder se ela mantiver no governo o mesmo padrão de aparelhamento, de distribuição de cargos em troca de apoio, de total descaso pela gestão e de política econômica que espanta o investimento produtivo do nosso país.

Danilo de Castro, presidente do PSDB, disse que Minas Gerais "falhou com um grande estadista". O que o fez perder para Dilma em seu estado natal?

Tenho plena consciência das conquistas e dos avanços que o meu governo proporcionou a Minas Gerais, mas, infelizmente, a força destrutiva que o PT direcionou para o meu estado foi
tão intensa que muita gente pode ter tido dúvidas.

Erros estratégicos, seus ou de sua campanha, pesaram?

Não ter me envolvido diretamente com mais frequência em Minas pode ter sido um erro estratégico.

Foi um fator o desempenho de Pimenta da Veiga, candidato do PSDB que perdeu a eleição para governador no primeiro turno?

Não é justo pôr a culpa nele.

Dilma disse que espera "ser uma presidente e uma pessoa melhor". O senhor acredita nisso?

Um bom começo é ser mais verdadeira, mais atenta à sua consciência e menos ao seu marqueteiro e agir acima das conveniências políticas, pondo em primeiro lugar o interesse dos brasileiros.

*Fernando Henrique Cardoso - Diálogo ou novas imposturas?

- O Estado de S. Paulo / O Globo

Numa democracia não cabe às oposições, como ao povo em geral, senão aceitar o resultado das urnas. Mas nem por isso devemos calar sobre o como se conseguiu vencer, nem sobre o por que se perdeu. Os resultados eleitorais mostram que a aprovação ao atual governo apenas roçou um pouco acima da metade dos votos. Ainda que a vitória se desse por 80% ou 90% deles, embora o respeito à decisão devesse ser idêntico ao que se tem hoje com a escassa maioria obtida pelo lulopetismo, nem por isso os críticos deveriam calar-se.

É bom retomar logo a ofensiva na agenda e nos debates políticos. Para começar, não se pode aceitar passivamente que a "desconstrução" do adversário, a propaganda negativa à custa de calúnias e deturpações de fatos, seja instrumento da luta democrática. Foi o que aconteceu, primeiro, com Marina Silva e, em seguida, com Aécio Neves.

O vale-tudo na política não é compatível com a legitimidade democrática do voto. Marina, de lutadora popular e mulher de visão e princípios, foi transformada em porta-bandeira do capital financeiro, o que não é somente falso, mas inescrupuloso. Aécio, que milita há 30 anos na política, governou Minas Gerais duas vezes com excelente aprovação popular, presidiu a Câmara dos Deputados e é senador, foi reduzido a playboy, farrista contumaz e "candidato dos ricos".

Até eu, que nem candidato era, fui sistematicamente atacado pelo PT, como se tivesse "quebrado" o Brasil três vezes (quando, como ministro da Fazenda, ajudei o País a sair da moratória), como se tivesse deixado a Presidência da República com a economia corroída pela inflação (como se não fôssemos eu e minha equipe os autores do Plano Real, que a reduziu de 900% ao ano para um dígito), como se os 12% de inflação em 2002 fossem responsabilidade de meu governo (quando se deveram ao temor de eventuais desmandos de Lula e do PT).

Não me refiro à língua solta de Lula, que diz o que quer quando lhe convém, mas ao fato de a própria presidenta e sua campanha terem endossado que o PSDB arruinou o Banco do Brasil e a Caixa Econômica, quando os repôs em sadias condições de funcionamento. E assim por diante, num rosário de mentiras e distorções, insinuando terem sido postos em baixo do tapete vários "escândalos", como o "da pasta rosa", ou o "do Sivam", ou "da compra de votos" da emenda da reeleição, etc., factoides construídos com matéria falsa, levantada pelo PT, submetida a comissões parlamentares de inquérito (CPIs), investigações várias e julgamentos que deram em nada por falta de veracidade nas acusações.

Mas isso não é o mais grave. Mais grave ainda é ver a reeleita colocando-se como campeã da moralidade pública. Entretanto, não respondeu à pergunta de Aécio Neves sobre se era ou não solidária com seus companheiros que estão presos na Papuda. Calou ainda diante da afirmação feita no processo sobre o petrolão de que o tesoureiro do PT, senhor Vaccari, era quem recolhia propinas para seu partido. Havendo suspeitas, vá lá que não se condene antes do julgamento, mas até prova em contrário deve-se afastar o indiciado, como fez Itamar Franco com um ministro e eu fiz com auxiliares, inocentados depois, no caso Sivam. Então, por que manter o tesoureiro do PT no Conselho de Itaipu?

Pior. A propaganda incentivada pela liderança maior do PT inventou uma batalha dos "pobres contra os ricos". Eu não sabia que metade do eleitorado brasileiro, que votou em Aécio, é composta por ricos... É difícil acreditar na boa-fé do argumento quando se sabe que 70% dos eleitores do candidato do PSDB, segundo o Datafolha, se compunham de pessoas que ganham até três salários mínimos. A propaganda falaciosa, no caso, não está defendendo uma classe da exploração de outra, mas enganando uma parte do eleitorado em benefício dos seus autores.

Isso não é política de esquerda nem de direita, é má-fé política para a manutenção do poder a qualquer custo. Igual embuste foi a insinuação de que a oposição é "contra os nordestinos", como se não houvesse nordestinos líderes do PSDB, assim como eleitores do partido no Nordeste.

Também houve erros da oposição. Quem está na oposição precisa bradar suas razões e persistir na convicção, apontar os defeitos do adversário até que o eleitorado aceite sua visão. Para isso precisa organizar-se melhor e enraizar-se nos movimentos da sociedade. Felizmente, desta vez Aécio Neves foi firme na defesa de seus pontos de vista e, sem perder a compostura, retrucou os adversários à altura, firmando-se como um verdadeiro líder.

Diante do apelo ao diálogo da candidata eleita devemos responder com desconfiança: primeiro mostre que não será leniente com a corrupção. Deixe que os mais poderosos e próximos (ministros, aliados ou grandes líderes) respondam pelas acusações. Que se os julgue, antes de condenar, mas que não se obstruam os procedimentos investigatórios e legais (Lula tentou postergar a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o mensalão o quanto pôde). Que primeiro a reeleita se comprometa com o tipo de reforma política que deseja e esclareça melhor o sentido da "consulta popular" a que se refere (plebiscito ou referendo?). Que se debata, sim, na sociedade civil e no Congresso Nacional, mas que se explicite o que ela entende por reforma política. Do mesmo modo, que tome as medidas econômicas para vermos em que rumo irá o seu governo.

Só se pode confiar em quem demonstra com fatos a sinceridade de seus propósitos. Depois de uma campanha de infâmias, fica difícil crer que o diálogo proposto não seja manipulação. Só o tempo poderá restabelecer a confiança, se houver mudança real de comportamento. A confiança é como um vaso de cristal, uma pequena rachadura danifica a peça inteira.

*Sociólogo, foi presidente da República