segunda-feira, 24 de março de 2014

Opinião do dia: Eduardo Campos

Precisamos proteger a maior empresa pública do Brasil, formada por trabalhadores de grande qualidade. O povo quer mudança em 2014. Não há marketing, maquiagem ou tempo de TV que mude isso.

Eduardo Campos, governador de Pernambuco e presidente nacional do PSB, em discurso no Seminário Programático PSB/Rede/PPS, Salvador, 22 de março de 2014.

Petrobrás abriu mão de cobrar 'calote' da Venezuela em obras de refinaria

Parceria internacional. Como a PDVSA, estatal venezuelana de petróleo, nunca formalizou associação para construir planta de refino em Pernambuco, empresa brasileira está impedida de cobrar investimentos prometidos pelo então presidente Hugo Chávez

Lisandra Paraguassu, Andreza Matais e Fábio Fabrini - O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA - Documentos inéditos da Petrobrás aos quais o Estado teve acesso mostram que a empresa brasileira abriu mão de penalidades que exigiriam da Venezuela o pagamento de uma dívida feita pelo Brasil para o projeto e o começo das obras na refinaria Abreu Lima, em Pernambuco. O acordo "de camaradas", segundo fontes da estatal, feito entre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ex-presidente da Venezuela Hugo Chávez deixou o Brasil com a missão de garantir, sozinho, investimentos de quase US$ 20 bilhões.

O acordo previa que a Petrobrás teria 60% da Abreu e Lima e a Petróleos de Venezuela SA (PDVSA), 40%. Os aportes de recursos seriam feitos aos poucos e, caso a Venezuela não pagasse a sua parte, a Petrobrás poderia fazer o investimento e cobrar a dívida com juros, ou receber em ações da empresa venezuelana, a preços de mercado. Essas penalidades, no entanto, só valeriam depois de assinado o contrato definitivo, de acionistas. Elas não chegaram a entrar em vigor, já que o contrato não foi assinado.

Os documentos obtidos pelo Estado mostram que a sociedade entre a Petrobrás e PDVSA para construção da refinaria nunca foi assinada. Existe hoje apenas um "contrato de associação", um documento provisório, que apenas prevê, no caso de formalização futura da sociedade, sanções pelo "calote" venezuelano.

Desde 2005, quando esse termo de compromisso foi assinado pelos dois governos, até o ano passado, a Petrobrás tentou receber o dinheiro devido pela PDVSA - sem sucesso. Em outubro do ano passado, quando o investimento na refinaria já chegava aos U$ 18 bilhões, a estatal brasileira desistiu.

Os venezuelanos não negam a dívida. No item 7 do "contrato de associação" a PDVSA admite sua condição de devedora (ver ao lado). Antes desse documento, ao tratar do fechamento da operação, uma das condições era o depósito, pelas duas empresas, dos recursos equivalentes à sua participação acionária em uma conta no Banco do Brasil - o que a o governo da Venezuela nunca fez.

Em outro documento obtido pelo Estado, a Petrobrás afirma que estariam previstas penalidades para o "descumprimento de dispositivos contratuais". Como nos outros casos, essa previsão não levou a nada, porque as penalidades só seriam válidas quando a estatal venezuelana se tornasse sócia da Abreu e Lima - e isso não ocorreu.

Chávez e Lula. A ideia de construir a refinaria partiu de Hugo Chávez, em 2005. A Venezuela precisava de infraestrutura para refinar seu petróleo e distribuí-lo na América do Sul, mas não tinha recursos para bancar tudo sozinha. Lula decidiu bancar a ideia. Mas Caracas nunca apresentou nem os recursos nem as garantias para obter um empréstimo e quitar a dívida com a Petrobrás.

Em dezembro de 2011, em sua primeira visita oficial a Caracas, a presidente Dilma Rousseff tratou o assunto diretamente com Chávez, que prometeu, mais uma vez, uma solução. Nessa visita, o presidente da PDVSA, Rafael Ramírez, chegou a anunciar que "havia cumprido seus compromissos" com a empresa e entregue uma "mala de dinheiro em espécie" e negociado uma linha de crédito do Banco de Desenvolvimento da China. Esses recursos nunca se materializaram.

O projeto inicial, que era de US$ 2,5 bilhões, já chegava, em outubro do ano passado, aos US$ 18 bilhões, quando a Petrobrás apresentou ao seu Conselho de Administração a proposta de assumir integralmente a refinaria. A estimativa é que o custo total fique em torno de US$ 20 bilhões.

Para justificar os novos valores, a empresa cita ajustes cambiais e de contratos, gastos com adequação ambiental e o fato de ter ampliado a capacidade de produção de 200 mil para 230 mil barris por dia. Os novos itens e a ampliação da produção explicariam o custo oito vezes maior que o inicial.

Procurada pelo Estado, para falar sobre o "calote" da Venezuela, a Petrobrás informou que nada comentará.

Episódio de Pasadena afeta imagem de ‘boa gestora’ de Dilma, afirma The Economist

A aprovação da presidente Dilma Rousseff da polêmica compra pela Petrobrás da refinaria de Pasadena, no Texas (EUA), revelada pelo Estado na semana passada ganhou destaque na mídia internacional. No último domingo, a revista especializada em economia, “The Economist” repercutiu a matéria do Estado com a fala da presidente alegando que a decisão da compra da refinaria, em 2006, se deu com base em um relatório “falho”.

“As revelações do Estado sobre a responsabilidade da presidente Dilma na compra atingem sua imagem de boa gestora”, afirma a matéria publicada no site da revista. “O mercado está cansado da interferência governamental na empresa que, na onda de más notícias, teve uma queda em suas ações”, continua a publicação.

A “The Economist” cita ainda a última pesquisa eleitoral divulgada pelo Ibope na semana passada, que apontava a presidente ainda como favorita nas eleições deste ano, com 47% de aprovação. Para a publicação, contudo, o episódio da estatal petrolífera envolvendo “a promessa de grande riqueza atrapalhada pelo mau gerenciamento e a interferência governamental é uma história que afeta a própria trajetória do Brasil”, conclui a revista.

CPI. Com a repercussão do episódio revelado pelo Estado, na última sexta-feira, 21, o ex-diretor da área Internacional da Petrobrás Nestor Cerveró, apontado por Dilma como responsável pelo relatório que subsidiou a compra da refinaria de Pasadena (EUA) foi exonerado pelo conselho de administração da Petrobrás. O executivo, que está de férias na Europa, deixou o cargo na diretoria financeira da BR Distribuidora.

Além disso, a oposição, capitaneada pelo pré-candidato do PSDB à Presidência, senador Aécio Neves (MG), ameaça abrir uma CPI no Congresso para apurar as irregularidades na estatal, que já está sendo investigada pela Polícia Federal, Tribunal de Contas da União e Ministério Público Federal.

Fonte: O Estado de S. Paulo

Aécio conversa com o ex-presidente FHC e com Alckmin para convencê-los a apoiar CPI

Investigação parlamentar teria como objetivo investigar a compra da refinaria de Pasadena, nos EUA

Daniel Camargos - Estado de Minas

O senador Aécio Neves (PSDB), pré-candidato à Presidência da República, tenta convencer outros líderes de seu partido a apoiarem a criação de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para investigar a compra da refinaria de Pasadena, no Texas (EUA), pela estatal. O ex-governador de São Paulo José Serra, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o governador paulista, Geraldo Alckimin, defenderam a investigação, mas até sexta-feira não consideravam que a CPMI fosse a maneira adequada.

Na manhã de ontem, durante o 58º Congresso Estadual de Municípios, em Campos do Jordão (SP), Aécio se reuniu com Alckimin. “Conversei com ele, ponderei que esta é a posição majoritária do partido e ele concordou”, disse o senador. Aécio também ligou para FHC e disse que o ex-presidente apoia a decisão. “Ele está absolutamente afinado conosco”, afirmou. Anteriormente FHC havia dito que uma partidarização entre PT x PSDB não seria boa na apuração das possíveis irregularidades na Petrobras.

“A Procuradoria está investigando. A Polícia Federal investiga e o Congresso Nacional tem o dever constitucional de investigar também”, disse Aécio. O senador informou que na terça-feira vai reunir as lideranças da oposição, incluindo o PSB e o PSOL, para colher as assinaturas necessárias para a abertura da CPMI. Para a investigação no Congresso são necessárias 27 assinaturas de senadores e 171 de deputados.

Aécio aproveitou para atacar o partido da presidente Dilma Rousseff, sua maior oponente nas eleições de outubro. “A grande verdade é que o PT nos acusou durante décadas de querer privatizar a Petrobras. Quem privatizou a Petrobras foi o PT, levando a empresa a ter um prejuízo de R$ 200 bilhões”, acusou. Ele disse ainda que o partido dele deseja “reestatizar” a Petrobras e tirá-la das mãos de um grupo político que, segundo ele, se apoderou da estatal.

Na sexta-feira, o engenheiro Nestor Cerveró foi exonerado da diretoria financeira da BR Distribuidora. Ele foi apontado pela presidente Dilma Rousseff como responsável pelo erro que levou à aprovação da compra da refinaria de Pasadena. A compra é investigada pelo Tribunal de Contas da União, Ministério Público do Rio e pela Polícia Federal. O problema é o preço, pois a estatal pagou, em 2006, US$ 360 milhões para compra de 50% da empresa, valor oito vezes maior do que a companhia belga Astra Oil havia pago no ano anterior por toda a refinaria.

Aécio acredita que a exoneração de Cerveró é uma maneira de terceirizar responsabilidades e acusa a presidente Dilma. “ Ela sabia de todas essas informações. A grande verdade é que parece que no governo federal a regra é a seguinte: cada um faz o que quiser, só não pode é ser pego, porque aí cada um assume a sua responsabilidade”, avaliou o pré-candidato tucano à Presidência.

Desvalorização
Outro pré-candidato à Presidência, o governador de Pernambuco, Eduardo Campos (PSB), também fez ontem críticas à presidente Dilma. Ele sugeriu que o governo planeja desvalorizar a Petrobras para privatizá-la. Em ato com sua possível vice Marina Silva, em Salvador, ele disse que a perda nas ações e as denúncias que envolvem a empresa o preocupam. "Em três anos, a Petrobras vale a metade do que valia e deve quatro vezes mais do que devia", disse, numa alusão aos anos de mandato de Dilma.

"Às vezes fico seriamente desconfiado se isso não faz parte de um plano para desvalorizar e vender a Petrobras." Mais tarde, em entrevista, Campos citou Dilma diretamente ao lembrar a campanha passada, em que ela acusou o então rival José Serra (PSDB) de querer privatizar a estatal. "Em 2010, a presidente acusou o candidato que disputava a eleição com ela de querer fazer a privatização da Petrobras. Três anos depois, a Petrobras vale a metade do que valia", disse. (Com agências)

FHC muda discurso e diz que apoia CPI para investigar Petrobrás

Ex-presidente diz em nota que o pré-candidato Aécio Neves 'conduzirá o tema em nome do PSDB'

Murilo Rodrigues Alves e João Villaverde - O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA - O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso mudou o discurso e disse neste domingo, 23, que apoia a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar como se deu a compra da refinaria de Pasadena pela Petrobrás. Em nota, ele afirmou que o senador Aécio Neves, presidente do partido e pré-candidato à Presidência da República, deve conduzir o tema em nome do PSDB, após a revelação feita pelo Estadode que a presidente Dilma Rousseff admitiu que desconhecia detalhes importantes do negócio, como uma cláusula que obrigava a estatal a comprar os 50% restantes da refinaria, se assim quisesse a sócia no empreendimento, a belga Astra.

"Os acontecimentos revelados pela imprensa sobre malfeitos na Petrobrás são de tal gravidade que a própria titular da Presidência, arriscando-se a ser tomada como má gestora, preferiu abrir o jogo e reconhecer que foi dado um mau passo no caso da refinaria de Pasadena. Pior e fato único na história da empresa: um poderoso diretor está preso sob suspeição de lavagem de dinheiro", disse FHC, em nota divulgada no site do PSDB.

FHC, que governou o País entre 1995 e 2002, antecedendo Lula no cargo, defendeu na semana passada uma investigação técnica do tema. Hoje, em nota informou que endossa a criação da CPI e a posição de Aécio, que deve disputar com Dilma as eleições de outubro.

"Sendo assim, mais do que nunca se impõe apurar os fatos. Embora, antes desse desdobramento eu tivesse declarado que a apuração poderia ser feita por mecanismos do Estado, creio que é o caso de ampliar a apuração. O presidente do PSDB, senador Aécio Neves, conduzirá o tema, em nome do partido, podendo mesmo requerer, com meu apoio, uma CPMI."

Veja a íntegra da nota:
"Os acontecimentos revelados pela imprensa sobre malfeitos na Petrobras são de tal gravidade que a própria titular da Presidência, arriscando-se a ser tomada como má gestora, preferiu abrir o jogo e reconhecer que foi dado um mau passo no caso da refinaria de Pasadena. Pior e fato único na história da empresa: um poderoso diretor está preso sob suspeição de lavagem de dinheiro.

Sendo assim, mais do que nunca se impõe apurar os fatos. Embora, antes desse desdobramento eu tivesse declarado que a apuração poderia ser feita por mecanismos do Estado, creio que é o caso de ampliar a apuração. O presidente do PSDB, senador Aécio Neves, conduzirá o tema, em nome do partido, podendo mesmo requerer, com meu apoio, uma CPMI.

Afinal é preciso saber por que só depois de tudo sabido foi demitido o responsável pelo parecer que induziu a compra desastrada da refinaria nos Estados Unidos e que relações havia entre o diretor demitido e o que está preso. Afinal, trata-se da Petrobras, empresa símbolo de nossa capacidade técnica e empresarial."

Em Garanhuns, Eduardo Campos volta a criticar desacelaração da economia

GARANHUNS (PE) - Em território petebista, o governador Eduardo Campos (PSB) e os integrantes da chapa majoritária da Frente Popular promoveram mais uma Agenda 40 com críticas direcionadas à presidente Dilma Rousseff (PT) e conquistas de apoios para a pré-candidato do secretário da Fazenda, Paulo Câmara (PSB), ao governo do estado. No município de Garanhuns, que tem no comando da Prefeitura o petebista Izaías Régis, na reunião da Agenda 40, Eduardo Campos, pré-candidato a presidente da República, voltou a reclamar da desacelaração da economia.

“O Brasil veio de um jeito até 2010 e agora segue outro rumo. O país cresce hoje metade do que cresce o resto da América Latina e não podemos permitir que se desconstruam os avanços que conquistamos”, alertou mais uma vez o socialista. O evento contou com a participação de 17 prefeitos, entre eles o de Jucati, Gerson Henrique (PTB).

Segundo os organizadores, cerca de mil pessoas lotaram o auditório do Clube da Aga, em Garanhuns, para recepcionar Eduardo, Paulo Câmara, o deputado federal Raul Henry (PMDB), pré-candidato a vice-governador, e Fernando Bezerra Coelho, indicado para disputar o Senado.

O encontro foi o quinto de uma série de reuniões com a população para ouvir propostas e construir em conjunto o programa de governo da Frente Popular para as próximas eleições. Foi a primeira Agenda 40 no Agreste Meridional. Ao longo da reunião, os participantes receberam cópias das diretrizes programáticas da Frente e fichas para sugestões de ações para compor o planejamento dos pré-candidatos da aliança governista.

Ao discursar, Paulo Câmara contou sobre sua experiência política e na gestão pública. O secretário ainda detalhou as principais ações que deve colocar no plano de governo para ampliar o desenvolvimento do Agreste Meridional. “Sabemos das vocações e necessidades dessa região e vamos trabalhar, principalmente, pelo fortalecimento do pólo educacional estabelecido aqui, da bacia leiteira, da agricultura familiar e do turismo do Agreste”, garantiu.

O tema água foi ressaltado por Fernando Bezerra Coelho. Ele destacou as ações em andamento do governo do estado para levar a segurança hídrica ao Agreste. “Hoje, são mais de R$ 125 milhões em obras para garantir água para essa região. Mas não vamos parar por aí e já temos cinco novas barragens em fase de estudo para que possamos ofertar a tão desejada segurança hídrica ao Agreste Meridional.” Ainda no encontro foi anunciada a data de 29 de junho para a convenção do PSB de Pernambuco para formalizar as candidaturas de Paulo Câmara, Raul Henry e Fernando Bezerra.

Fonte: Diário de Pernambuco

Morre Adolfo Suárez, o líder que mudou a história da Espanha

Adolfo Suárez, em fevereiro de 1988.

Em menos de três anos, Suárez comandou a transformação de um Estado ditatorial em uma democracia constitucional. “Nós fomos o nosso próprio antecedente”, disse o ex-premiê certa vez

Joaquín Prieto – El Pais

Era a coragem em forma de pessoa, e o mais firme defensor dos valores do diálogo e do consenso. Mas, acima de tudo, Adolfo Suárez González, morto aos 81 anos após uma longa enfermidade neurodegenerativa, entra para a história por ter guiado uma autêntica mudança no rumo dos assuntos públicos da Espanha, que transitou do Estado ditatorial para a democracia constitucional em apenas dois anos e meio, apesar da intensidade dos esforços da extrema direita e do terrorismo do ETA e dos GRAPOs para impedir isso e das conspirações de franquistas entrincheirados no imobilismo.

Uma manobra do rei dom Juan Carlos foi precisamente o que desbloqueou o caminho de uma reforma política que teve muitos pais. Suárez havia redigido um mapa da futura democracia, “algumas folhas” que pôs nas mãos do rei no maior dos segredos, conforme afirma seu círculo íntimo. Essa versão contrasta com as Memórias póstumas de Torcuato Fernández Miranda, o maduro professor que atuou de mentor político de dom Juan Carlos em seus primeiros anos como rei, e que atribuía a si próprio nessa obra o papel de desenhista da Transição. Líderes da esquerda, como Felipe González e Santiago Carrillo, também participaram plenamente das decisões da Transição e, embora mais tardiamente, também é preciso reconhecer o papel de Manuel Fraga.

Mas o fato é que nada teria sido possível se Suárez, à frente do segundo Governo do rei, tivesse titubeado ou se atrapalhado na condução do processo durante o escasso ano que transcorreu entre sua nomeação como chefe de Governo e as eleições de 15 de junho de 1977. Ele decidiu uma primeira anistia de presos políticos, dissolveu o Movimento Nacional, legalizou os partidos que lutavam pela democracia; socialistas e comunistas contiveram os mais radicais, e Suárez se empenhou em que as estruturas franquistas praticassem o haraquiri, como um general que torce o braço da sua tropa, sempre pelo procedimento de “da lei para a lei”. Daí a aversão que lhe dedicam os elementos imobilistas.

Dom Juan Carlos demitiu Carlos Árias, seu primeiro presidente de Governo, em 30 de junho de 1976. Este não tinha apresentado sua demissão, mas tampouco resistiu. Nos dias subsequentes, Fernández Miranda manobrou para tornar possível que os conselheiros do Reino incluíssem Suárez na lista tríplice de nomes propostos ao cargo de primeiro-ministro (a “terna”, no jargão da época). Era um assunto delicado, porque, segundo a legislação da ditadura, o chefe de Estado só poderia designar um dos três que fossem propostos por aquele órgão, dominado por franquistas de toda a vida. Daí a habilidade com que Fernández Miranda conduziu as deliberações para que o nome de Suárez figurasse como se fosse um mero recheio. Ao final, anunciou: “Estou em condições de oferecer ao rei o que ele me pediu”, sem especificar em que consistia. O segredo ficou guardado até o dia em que o monarca convocou Suárez ao palácio da Zarzuela para lhe pedir “o favor” de aceitar a presidência do Governo. E ao futuro condutor da Transição só lhe ocorreu esta primeira resposta: “Por fim!”.

Suárez tinha então 43 anos. Criado politicamente no Movimento Nacional (o partido único de Franco, um magma de falangistas, sindicalistas verticais e ocupantes de cargos públicos), fazia nove anos que se dedicava à política. Havia começado como procurador nas Cortes (hoje deputado) por Ávila, sua província natal, até assumir a secretaria geral do Movimento no primeiro governo sob o Rei. Uma trajetória com pouco brilho e muita juventude para a elite intelectual e burocrática da época, que, sem querer, compartilhou com a oposição clandestina a impressão de que o rei havia cometido o maior engano da sua vida.

“Obrai sem medo”
Foi isso que disse o rei na primeira reunião do Conselho de Ministros formado por Suárez, segundo testemunho do seu então vice-presidente, Alfonso Osorio. Não haviam transcorrido nem duas semanas desde a designação quando o novo Executivo anunciou a realização de eleições em menos um ano, sendo fixado o prazo máximo de 30 de junho de 1977. Abandonada a hesitante reforma política do Governo anterior, o novo projeto passava por estabelecer um objetivo mais claramente democrático. A base para isso saiu do cérebro de Fernández Miranda, o que ele mesmo chamou de um documento “sem pai”. Por mais limitado que pareça atualmente o objetivo, tratava-se de escolher um Parlamento por sufrágio universal, pela primeira vez desde 1936. Para conseguir isso, era necessária a aprovação por dois terços dos votos nas Cortes franquistas. No tentativa de superar os obstáculos, Suárez protagonizou em 8 de setembro uma reunião com o alto comando militar, da qual saiu a versão de que o presidente tinha prometido não legalizar o Partido Comunista da Espanha. Por isso, quando o fez, nove meses mais tarde, uma parte do alto comando se sentiu traída e considerou que havia pretexto suficiente para protagonizar um princípio de rebelião.

Primeiro foi a lei de reforma política, negociada não com a oposição ilegal –embora esta tenha sido mantida a par –, e sim com a Aliança Popular, o grupo que Manuel Fraga acabava de fundar e que contava com 200 procuradores nas Cortes franquistas. Em 18 de novembro de 1976, uma ampla maioria de procuradores das Cortes (425 a favor, 59 contra, 13 abstenções) aprovou a lei que autorizava o Governo a convocar eleições para o Congresso e o Senado, excetuando-se os 40 senadores reservados à nomeação pelo rei. Imediatamente foi convocado um referendo de ratificação que contou com uma participação de 77% do eleitorado (apesar da abstenção pregada pela oposição), dos quais 94% votaram a favor.

Suárez conseguiu uma grande vitória após torcer o braço da sua própria tropa. Esse triunfo reforçou a posição do presidente de Governo frente a Fernández Miranda, que havia se limitado a atuar à sombra. Aí começou o distanciamento entre os dois. Suárez tomou decididamente as rédeas da negociação a respeito das condições em seriam realizadas as primeiras eleições, a legalização dos partidos clandestinos (não todos, mas os que eram considerados mais importantes) e os preparativos para as urnas. O terrorismo do ETA, dos GRAPOs e da extrema direita se abateu sobre o incipiente projeto democrático, mas isso não impediu a legalização dos principais grupos de esquerda que viriam a formar a base da estrutura política do Estado reformado. Em 9 de abril de 1977 foi legalizado o Partido Comunista, pouco depois de ser retirado o gigantesco jugo e as flechas instalados na rua Alcalá, 44, em Madri, na sede do (até então) partido único.

Em 11 de abril demitiu-se o ministro da Marinha, almirante Pita da Veiga, e no dia 12 ocorreu a reunião do Conselho Superior do Exército que expressou a “repulsa geral” à legalização do PCE “em todas as unidades do Exército”. A publicação desse comunicado militar coincidiu com a primeira reunião pública do PCE em Madri, que buscou responder ao movimento militar colocando a bandeira vermelha e amarela do Reino na mesma sala onde estava a bandeira vermelha comunista. Seu secretário-geral, Santiago Carrillo, fez uma declaração de reconhecimento ostensivo à Monarquia. A maioria da imprensa, que em janeiro havia publicado um editorial conjunto contra a desestabilização, voltou a difundir outro em abril, intitulado Não Frustrar Uma Esperança, em defesa da democracia e da neutralidade dos militares.

O presidente do Governo confirmou a vontade de ir às eleições. Ele mesmo quis concorrer; não tinha partido político nenhum, mas desembarcou em uma coalizão de 14 grupos (democratas-cristãos, liberais, sociais-democratas) que pululavam sob o nome de Centro Democrático. Após deslocar a sua figura principal, José María da Areilza, alçou-se ao comando da improvisada UCD. Muita gente sua também entrou para o grupo, ficando conhecidos como “os azuis”, pela cor da camisa falangista. Da campanha para as eleições de 1977 data uma das suas frases mais famosas, “posso prometer e prometo”, sugerida por seu colaborador Fernando Ónega.

Bipartidarismo imperfeito
Os resultados do 15-J desenharam esse “bipartidarismo imperfeito” que ainda perdura, com um partido dominante, mas sem maioria absoluta (UCD), que obteve 166 deputados, bem mais que a Aliança Popular, de Manuel Fraga, que ficou com 16. Enquanto isso, o PSOE assumia a hegemonia à esquerda, com 118 deputados, contra o PCE de Santiago Carrillo, que elegeu 19. A coalizão nacionalista de Jordi Pujol obteve 11, e o PNV, 8.

Sem maioria absoluta, mas à frente da força dominante (UCD), Suárez se lançou em múltiplas direções. Por um lado, tentou reforçar sua autoridade sobre a UCD empurrando seus diversos partidos para uma dissolução em favor da unidade, enquanto se apoiava para a tarefa de governo em um número dois de confiança, Fernando Abril Martorell. Por outro lado, reconheceu a legitimidade da Generalitat da Catalunha na pessoa do seu presidente no exílio, Josep Tarradellas. E ao mesmo tempo lançou à arena pública a invenção do “consenso”, cujo primeiro fruto foram os pactos de Moncloa (outono europeu de 1977), que reuniram um amplo leque de partidos e sindicatos sob um acordo para fazer frente à crise econômica.

A Constituição foi o segundo fruto do consenso. Foi elaborada ao longo de 1978, enquanto a direita e parte dos centristas chiavam contra Suárez, seu poder e sua atitude presidencialista. O mal-estar militar só crescia, e o terrorismo etarra deixou bem clara sua tentativa de acabar com a incipiente democracia. Nessas condições, foi selado o acordo da Constituição, afinal aprovada num referendo em 6 de dezembro de 1978.

Nem a participação no referendo foi muito elevada (67%), nem se conseguiu o apoio ao texto constitucional por parte do PNV, que optou pela abstenção no País Basco. Em todo caso, considerou-se um grande triunfo que se chegasse a promulgar a Carta Magna elaborada com participação ativa da direita (AP), da centro-direita (UCD), do socialismo, do comunismo e do nacionalismo catalão. Mas aí acabou o consenso. A partir desse resultado compartilhado, cada setor político decidiu continuar seu próprio caminho. O presidente dissolveu as Cortes constituintes, convocou novas eleições e voltou a ganhar, em março de 1979, em condições semelhantes às anteriores: sem maioria absoluta, mas outra vez em posição dominante.

O trem empaca
O resultado das eleições de 1979 marcou uma nítida ruptura entre Adolfo Suárez e o grupo socialista situado em torno de Felipe González, algo com grandes consequências para o futuro. Suárez fechou a campanha eleitoral com um pronunciamento televisivo em que atacou o PSOE como sendo defensor do “aborto livre”, do “desaparecimento do ensino religioso” e de “uma economia coletivista”. Felipe González devolveu essa bola na sessão de posse de Suárez, expondo seu passado no Movimento Nacional. Um ano mais tarde, a moção de censura socialista contra Suárez não obteve votos suficientes para derrubá-lo, mas o fragilizou. As posições dentro da UCD se dividiram; a lei do divórcio e a do Estatuto de Centros Docentes tropeçaram na oposição interna dos democratas-cristãos. A opinião publicada da época usou as palavras “desilusão” e “desencanto” para se referir à situação do país em 1980. O ambiente de confusão e mal-estar impregnou a opinião pública, que retirou rapidamente o apoio a Suárez, conforme as pesquisa da época.

Se a chave do consenso havia sido uma reforma democrática compartilhada pela direita civilizada, pela esquerda e pelo nacionalismo catalão, no final de 1980 o presidente do Governo já não tinha força para convencer os barões do seu próprio partido. As conspirações militares e civil-militares avançavam em ritmo acelerado. Os principais banqueiros pressionavam parte da UCD para que abandonasse Suárez – que acabava de implantar uma política fiscal digna desse nome. “Queriam que nos incorporássemos à direita pura e dura, ou seja, ao grupo da Aliança Popular”, relatou o democrata-cristão Fernando Álvarez de Miranda em suas Memórias. O trato entre o rei e Suárez esfriou: o presidente queria ser o responsável constitucional por um rei que lhe escapava, fiel à ideia de que preferia atribuir os êxitos do Governo à Coroa, e seus fracassos, ao próprio Governo. E o terrorismo etarra continuava sua tarefa de demolição implacável da confiança na democracia.

No fim de janeiro de 1981, Adolfo Suárez decidiu atirar a toalha e renunciou à presidência do Governo. Isso acelerou o nervosismo dos implicados nas diversas conspirações militares em marcha. Desconhecedor do que se tramava, assistiu como presidente demissionário à segunda e definitiva votação de investidura de seu sucessor, Leopoldo Calvo Sotelo, em 23 de fevereiro de 1981, quando o então tenente-coronel Antonio Tejero invadiu o Congresso à frente de centenas de guardas civis. Aí ressurgiu o melhor Suárez, o homem arrojado, que enfrentou os invasores sem outro respaldo que o da sua coragem pessoal diante das armas rebeladas.

Saiu prestigiado daquele teste, mas, na verdade, foi seu canto do cisne: o animal político de raça tentou se recuperar e já não conseguiu. A Espanha deixou o líder genial cair, considerando que seu tempo havia passado e que outros protagonistas lutavam para abrir espaço. Ainda construiu outro partido, o Centro Democrático e Social (CDS), mas os resultados foram medíocres. Suárez se retirou do primeiro plano da política em 1991 e se refugiou em um discreto escritório profissional como advogado. Em 2003, começou a sofrer os sintomas do Alzheimer, e a notícia, mantida na discrição por seu primogênito, Adolfo, tornou-se pública em 1º. de junho de 2005.

E a partir de então tudo foram homenagens e reconhecimentos ao estadista, ao homem adequado no momento oportuno, sublimado na consideração pública pela nostalgia de um tempo em que os conflitos políticos se resolviam pelo diálogo e a negociação, numa Espanha onde a crispação era limitada aos extremismos, sem afetar as correntes centrais da política. Seja como for, ninguém pode negar o méritos de Adolfo Suárez na tarefa de ter conduzido o trem da Transição sem que descarrilasse. E sem conhecer a ferrovia pela qual trafegava. Como recorda seu biógrafo Juan Francisco Fontes, Adolfo Suárez disse que não existiam modelos nacionais ou internacionais que pudessem servir de molde para a transição espanhola, e por isso afirmou: “Nós fomos o nosso próprio antecedente”.

Pesquisas e o Diabo

O diabo, além de estar nos detalhes, está nos números. No caso das eleições para presidente em 2010, a ultima medição objetiva sobre quem está a favor e quem está contra o governo, a aritmética prova que ninguém é muito maior que ninguém.

No segundo turno da eleição, Dilma teve 55.700.000 votos e José Serra ficou com 43.700.000; obviamente não dá para fazer de conta que os votos do perdedor não existem. Na verdade, já é um assombro que Serra, tido como um dos candidatos menos atraentes do planeta, tenha conseguido esses espantosos 43,7 milhões de votos; positivamente algo não deu certo do outro lado.

Além disso, mais de 29 milhões de eleitores nem foram votar, e outros 7 milhões preferiram ficar nos nulos e brancos – ou seja, 36 milhões de cidadãos simplesmente não votaram em ninguém. Resumo da ópera: de um eleitorado total de 135 milhões de pessoas, 80 milhões não votaram em Dilma

Fonte: Veja.

Henrique Alves: ‘Lamento que o Michel Temer só seja chamado para apagar incêndios’

Presidente da Câmara fala também sobre a reforma ministerial e as discussões sobre o Marco Civil da Internet

Luiza Damé – O Globo

O presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN) afirma que decisão sobre sua candidatura ao governo do Rio Grande do Norte é do partido Ailton de Freitas/ Agência O Globo
BRASÍLIA - Em um momento de dificuldades na articulação política do Palácio do Planalto, o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), defendeu maior protagonismo do vice-presidente da República, Michel Temer, na interlocução com o Congresso.

Em entrevista ao GLOBO, o deputado disse que o governo Dilma Rousseff não poderia abrir mão da experiência de Temer no parlamento e deveria evitar convocá-lo apenas para "apagar incêndios". O presidente da Câmara afirmou que Temer, com a experiência de ter passado pela liderança do PMDB e pela presidência da Câmara (que presidiu por três vezes), além de ter assumido interinamente a Presidência da República, conhece bem o Congresso e transita na base e nos partidos de oposição.

Na semana passada, os problemas de coordenação política ficaram evidentes na discussão do Marco Civil da Internet, cuja votação foi adiada para esta semana, por pressão de setores da base aliada, incluindo o PMDB, sob a liderança do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Henrique evitou críticas diretas à atuação da ministra de Relações Institucionais, Ideli Salvatti, responsável pela articulação com a base aliada.

Para o presidente da Câmara, além das questões próprias de um tema com interesses diversos, pesou para a reação do PMDB, a reforma ministerial feita pela por Dilma Rousseff, que, na avaliação dele, foi mal conduzida. Henrique afirmou que a reforma provocou um clima de radicalização na bancada do PMDB, acirrado pela "tensão eleitoral".

O presidente da Câmara deixou claro seu desejo de que o deputado Asdrúbal Bentes (PMDB-PA) renuncie ao mandato e evite a exposição da Casa. O parlamentar foi condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por trocar cirurgias de esterilização por votos e teve a prisão decretada. A Câmara terá de abrir processo de cassação do seu mandato.

Confira a íntegra da entrevista:

A articulação do governo comandada pela ministra Ideli Salvatti acirrou a rebelião ao tentar atropelar os líderes e o presidente da Câmara, insistindo na votação do Marco Civil da Internet sem acordo, na última semana?

Veja bem. O marco civil, todos querem votar pela importância do tema. Seja aqui ou fora daqui. É uma pressão muito grande. É o assunto do momento no Brasil e no mundo inteiro. Todos querem votar. O problema é a forma de votar: o que votar consensualmente, o que ir para a disputa no voto. Com a visão que tenho de presidente da Câmara e por conversar com todos os partidos e com os parlamentares individualmente, eu tenho a exata noção e o sentimento que o governo às vezes não tem do quadro, da realidade do plenário. Eu sabia que, se não amadurecesse melhor e se não se discutisse melhor, correia o risco de não se ter maioria nem de um lado nem do outro. Havia uma insegurança dos que queriam aprovar e dos que queriam derrotar. Esse é um tema que a Casa de aprovar por consenso. Todos os itens tem de ser esclarecidos para que se construa uma consciência muito sólida pela importância da Internet e toda a sua liberdade. Eu tinha uma informação que o governo não tinha. Só que o governo tem um diálogo muito estreito na Câmara, conhece muito pouco a realidade, apesar dos esforços do líder do governo, Arlindo Chinaglia. Mas ele tem um diálogo setorial com a base. Eu, por ser presidente da Câmara, tenho diálogo com a base e com a oposição e até com os indiferentes. Eu sabia que não estava maduro para votar, mas o governo queria votar. Eu tenho muito mais razão para votar do que o governo, porque essa matéria está na pauta desde outubro. Quem tinha mais pressa para tirar da frente, era eu, porque a Câmara está sem legislar sobre várias matérias de interesse da sociedade, mas não podíamos votar porque o marco civil estava trancando a pauta. Eu não queria expor a Câmara a uma obstrução. Ou chegar lá, ter uma insegurança e uma radicalização. Após a reunião de líderes e com o ministro (José Eduardo) Cardozo (Justiça) e a ministra Ideli, o governo recuou no diálogo, os que queriam avançar avançaram, e estamos com um texto praticamente consensual para votarmos nesta terça-feira.

O senhor acha que a negociação pode avançar sobre a neutralidade de rede, já que o líder Eduardo Cunha já disse que só a retirada da palavra "decreto" não satisfaz parte da bancada do PMDB?

Com certeza avançará, sim. Eu tenho conversado com o líder do PMDB, que conhece muito esse assunto, se preparou para esse debate, mas respeita a posição da sua bancada. Eu tenho certeza de que a importância do texto, a sua discussão e a sua aprovação vão ensejar de todos uma colaboração mútua, uma redação que adeque e que possamos aprovar na terça-feira à noite, eu te asseguro, o Marco Civil da Internet.

A discussão do Marco no meio da disputa eleitoral e a rebelião da base dificulta a aprovação?
Em algum momento, não tem como negar, criou-se um clima de enfrentamento e de certo radicalismo, eu diria, onde todos erraram. Eu acho que reconhecer excessos e equívocos não diminui ninguém. É preciso ter consciência e procurar o entendimento, a adequação. Então, a questão radicalizou muito em relação ao PMDB, por um início de reforma ministerial que foi mal conduzida, em que a bancada do PMDB não agiu, mas reagiu, e a partir daí foram declarações em tom mais elevado de um lado e do outro, próprias de um ano eleitoral, da tensão eleitoral e das dificuldades entre os partidos, muito normal neste período. Quem tem experiência, como eu, de 42 anos de parlamento, sabe que isso acontece, mas depois vem o bom-senso e predomina a responsabilidade. O Legislativo não pode ser palco de confronto, mas deve ser a Casa do entendimento, do convencimento e do respeito. Acho que este momento está chegando. O governo se conscientizou de que possa ter exagerado na sua reação. Eu acho que o PMDB, em declarações, possa ter radicalizado nesse processo. Como o Poder Legislativo é a Casa do diálogo e do entendimento, eu acho que vai prevalecer, tanto no PMDB, mesmo nos partidos de oposição e necessariamente no governo, o clima do entendimento e da responsabilidade, como a Casa exige. O povo brasileiro cobra do Legislativo maturidade, responsabilidade e nível alto internamente.

O PT não esconde que pretende eleger as maiores bancadas na Câmara e no Senado, para ter o comando das duas casas em um eventual segundo mandato da presidente Dilma. Esse projeto hegemonista não é um risco à democracia?

Eu não sei se esse é o projeto de todo o PT. Pode ser de parte do PT. Mas, se isso se confirmar, é um grande equívoco. O Brasil não tem essa formação hegemônica, de dar esse poder nem a um nem a outro, qualquer que seja o partido. O Brasil sempre foi multipartidário, sempre com discussão muito ampla, com alternância de poder. O país não tem característica de hegemonia de quem quer que seja. Eu acho que essa pretensão equivocada. Por outro lado, é natural que os partidos queiram crescer. Aí está um ponto grave na aliança PT e PMDB. O PMDB, na eleição de 2010 - que elegeu a Dilma e o Michel -, entrou com muita visibilidade na ação administrativa, na ação política. Nós tínhamos o Ministério da Saúde, da Integração, das Comunicações, que davam ao partido uma visibilidade, mostrando sua participação na administração, sua presença no governo, o que naturalmente rendeu frutos para ajudar a eleger bancada na Câmara e no Senado. Na nova eleição, onde o PMDB tem um diminuto Ministério do Turismo - estou falando da Câmara, que eu conheço e me responsabilizo -, com orçamento reduzido, e da Agricultura, que foi muito reduzido pelos poderes do Ministério da Reforma Agrária (Ministério do Desenvolvimento Agrário). Tem um exemplo clássico, implementos agrícolas - a palavra está dizendo implementos agrícolas, para serem usados na agricultura - não são entregues ao povo brasileiro, às lideranças municipais pelo Ministério da Agricultura. São entregues pelo Ministério da Reforma Agrária, o que mostra uma distorção na intenção. Então isso dá ao PMDB hoje, do ponto de vista da visibilidade administrativa e da sua influência no governo, que bem avaliado renderia frutos para as bancadas que apoiam, sobretudo à do PMDB que é a segunda maior na Câmara, uma posição muito prejudicada. Então, a bancada reage. Aí qual é a solução na reação? É a bancada crescer pela sua ação no parlamento: os projetos que vota, o voto que dá, o discurso que faz, a votação que ganha.

Mas e a bancada como fica?

Por isso, queremos votar coisas importantes. Se não temos ação administrativa como mereceríamos e gostaríamos, porque já tivemos no governo Lula, a gente quer, através da ação parlamentar, esse espaço de visibilidade, para cada um chegar ao seu estado e dizer "eu fiz isto", "eu fiz aquilo", "eu aprovei aquilo", "eu votei aquilo". Isso é natural. O partido quer manter ou crescer a sua bancada. Não é um confronto com o PT, que no governo tem 17 ministérios. E não é só quantidade, não. É a qualidade deles: Saúde, Educação, Planejamento, Assistência Social (Desenvolvimento Social), Fazenda e por aí vai.

Tudo bem, assim foi feito, e o partido aceitou esse tempo todo, não é hora de chegar e fazer disso um cabo de guerra, mas estou explicando por que o PMDB, a sua bancada - que é a vitrine do PMDB, uma bancada de 72 deputados - quer ter essa exposição, essa participação. A bancada diz muito - e eu assino embaixo: nós queremos votar na Dilma, mas voltar também com ela, ter uma bancada forte, importante, significativa. Então esse confronto existe. Na hora em que a presidente se postar como magistrada nessa disputa, equilibrando - e não é só com o PMDB, mas com os demais partidos da base também - e entender que o seu governo tem de ser, senão igual, não tão desigual, para atender o PMDB, atender o PR, o PP, o PTB, enfim, os partidos da base e equilibrar um pouco esse pretexto e essa razão de os outros partidos estarem em guerra com o PT.

Eu acho que, com bom senso e equilíbrio, pode resolver. No que depender de mim, eu vou ajudar, porque eu quero a reeleição da presidente Dilma e do vice Michel. Essa é a minha posição. Eu falo, não como presidente da Câmara, mas como peemedebista do Rio Grande do Norte, onde eu presido o partido. O meu estado tem muitas razões para ter votado em Lula, antes, e agora votar em Dilma, de novo.

Mas o PMDB tem o vice Michel Temer...

Eu não consigo entender: o governo tem dentro dele e a poucos metros de distância do gabinete da presidente, uma liderança que foi líder do PMDB, três vezes presidente da República, que é Michel Temer, que tem o respeito de toda a Casa, que tem diálogo não só com o PMDB, mas com todos os partidos da base e da oposição, e eu lamento muito que esse Michel Temer, que o Congresso conhece, e o Brasil respeita, só seja chamado muitas vezes para apagar incêndios, em cima da hora, quando poderia ser uma ponte permanente de construção de diálogo entre o nosso governo e o parlamento, que só quer isso, é diálogo, é respeito, é o convencimento e não o enfrentamento. Eu lamento muito que um homem da qualidade do Michel Temer não esteja sendo melhor utilizado. Em horas críticas, difíceis, naturais no embate no Legislativo de temas que às vezes agradam ou desagradam o Executivo, você tem um interlocutor de mão cheia, como se diz aqui no Nordeste, que poderia dar muito maior e melhor contribuição a este processo que estamos vivendo aí, independente de ser ano eleitoral ou não. Gostaria de deixar este registro aqui, uma lembrança ou advertência ao governo, de que o Michel poderia ser um parceiro muito mais eficiente, muito mais próximo de construir soluções do que de apagar incêndios.

O Supremo determinou a prisão do deputado Asdrúbal Bentes. Mas a Câmara terá que cumprir um rito de mandar para a CCJ e votar no plenário, que acaba expondo a Casa. Como encaminhar isso de forma célere para reduzir esse desgaste?

Nós temos uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) do Senado, que já foi aprovada na comissão especial, e eu pretendo levar ao plenário, que encerra esse questionamento lá no Judiciário. Casos assim, com condenação judicial transitada em julgado, já tenham a decisão de perda do mandato na decisão do Judiciário, evitando todo esse procedimento na Câmara. Enquanto isso não acontece, a Câmara já teve um avanço que é votar com voto aberto, tornando explícita portanto a posição do parlamentar. Já é um meio caminho. Você consertou um pouco aquela coisa que aconteceu lá atrás, com o deputado Donadon, que, no voto secreto, promoveu uma gravíssima distorção. Agora com o voto aberto, cada um assume. Foi um avanço. De qualquer maneira, é sempre constrangedor. Eu vou me portar como sempre me portei, de maneira isenta, cumprindo o regimento. O processo chegando à Câmara, ainda não chegou, eu convocar a Mesa Diretora, iniciar o processo. Até lá, o deputado terá tempo de pensar, consultar os amigos, seus aliados, seus familiares, qual o será o melhor procedimento - se vai adiante ou se, a exemplo de outros, evita a via crucis, certa ou errada, justa ou injusta, e renuncia ao mandato. Não sei. Essa é uma decisão de fôro íntimo. Terça-feira, eu vou aguardar, assim que as coisas cheguem à Presidência, para iniciar o processo, lamentando muito, mas vamos cumprir nosso dever regimental.

O senhor já decidiu seu futuro político? Será candidato ao governo do Rio Grande do Norte?

Eu tenho 11 mandatos na Câmara. Esta Casa é a minha vida, meu patrimônio de vida, é um trabalho que faço com muita alegria, com muita hora e muita emoção. Eu iria naturalmente para uma possível reeleição de deputado federal e quem sabe até poder sonhar com uma possível reeleição, se mantivermos o rodízio com o PT na Câmara, que prevaleceu nas últimas duas legislaturas. A prevalecer essa questão das bancadas se revezarem, eu poderia sonhar, quem sabe numa negociação com o PT, com uma reeleição, o que me honraria muito e seria muito importante para o meu estado essa presença nacional. Aqui no meu estado tem uma convocação forte do meu partido e do estado mesmo para que eu seja candidato a governador. Quem tem 11 mandatos recebidos do povo do Rio Grande do Norte, 11 mandatos recebidos do seu partido não pode, em uma hora desta, se for essa a posição, recusar. Eu não poderei recusar. Então, na próxima sexta-feira, o partido vai se reunir com outros partidos, e vamos decidir. Se houver essa convocação do Rio Grande do Norte e do meu partido, com muita honra, eu aceitarei essa convocação e estarei à disposição para disputar, de maneira democrática, conversando com todos os partidos, porque a situação do estado está muito difícil, num desgaste muito grande, muita falta de credibilidade administrativa. O estado tem de se reerguer. Se eu puder colaborar com a minha experiência, eu não me furtaria. Mas vamos tomar essa decisão sexta-feira.

Quem é seu candidato a presidente da Câmara? O deputado Eduardo Cunha?

É um assunto que tem de ser tratado após as eleições. Se eu for para a reeleição de deputado, esperar a eleição, o tamanho das bancadas e de maneira muito leal ao partido que for o primeiro, o PMDB ou o PT, discutir a estratégia do rodízio, que foi boa para a Casa. Revezar as duas bancadas, porque democratizou o espaço administrativo e político da Câmara. Primeiro, aguardar a eleição, o tamanho das bancadas e, se for o caso, mantendo-se o rodízio, o PMDB poderia tentar, se não for o meu nome, eu não estando aí, uma alternativa do partido. Acho que entrar nessa chuva agora não seria um bom caminho. É melhor guardar e ter o nome certo para decidir essa questão.

O senhor participará da solenidade de devolução dos mandatos de deputados cassados pela ditadura, na Assembleia do Rio. Qual a importância desse ato para a democracia brasileira?

É um momento histórico para mostrar à nossa juventude que pessoas injustiçadamente punidas foram em um erro cometido pelo processo revolucionário. É bom sempre ressaltar o valor que elas defenderam da liberdade e da democracia. É bom reviver essa história e mostrar a importância da democracia, da liberdade e da cidadania. Muitos se expuseram, correram riscos e foram cassados, torturados e assassinados em prol de uma luta pela liberdade. É bom esses valores serem relembrados.

FHC vê nos atritos de Dilma com o Congresso reflexos de 1964

Para FHC, ainda falta eficácia à democracia brasileira, disse em entrevista na Folha de S. Paulo

Aécio Neves: Já deu!

Protagonista de um governo refém dos interesses do regime de aparelhamento que se abateu sobre o Estado nacional, a presidente Dilma Rousseff já não sabe mais o que dizer ao Brasil, além de terceirizar responsabilidades.

Atônitos, os brasileiros são informados que, em poucos anos, a 12ª maior empresa do mundo foi transformada na 120ª e começam a perceber que, infelizmente, a PTrobras, longe de ser uma exceção, é o retrato do governo sob o comando do PT.

Incapacidade de gestão e planejamento. Desvios e suspeições. Excesso de compromisso com os companheiros, falta de compromisso com o país.

De um lado, a gravidade das revelações objetivas que vêm à tona e fazem a realidade superar as versões, que, antes sussurradas no meio político, já pareciam inverossímeis.

De outro, a vaidade e a onipotência daqueles que parecem acreditar que somos, os brasileiros, um conjunto de tolos.

O que se tornou conhecido por todos recentemente já era, há muito, de domínio do governo. Por que, então, por exemplo, só agora o diretor que passou a ser o bode expiatório do escândalo foi demitido?

Por que personagens das páginas policiais estiveram, até ontem, protegidos em posições de extrema confiança?

O que mudou? O que transformou um bem feito num malfeito foi apenas a percepção da sociedade? Que governo é este que só age ou ensaia providências quando é confrontado pela opinião pública?

De onde vem tanta arrogância, que faz com que os representantes do PT tripudiem sobre a percepção dos brasileiros?

Primeiro, inventaram os "recursos não contabilizados". Na semana passada, o presidente do Banco Central chamou de mera "realocação contábil" a iniciativa da Caixa de lançar os recursos confiscados dos correntistas como lucro. Agora, na ausência de um mordomo, a culpa parece ser do "relatório".

Os brasileiros vêm sendo desrespeitados todos os dias por ações concretas, sempre envoltas em coincidências demais e transparência de menos, mas também pela forma com que o governo responde a elas.

Estamos cansados de ver o interesse público e coletivo, razão de ser da própria República e da democracia, confundido com os interesses privados e os projetos individuais de poder de pessoas e de partidos.

Uma coisa são os desafios da nação. Outra, são os problemas criados pelo governo.

O governo que o eleitor escolheu para ser solução se transformou no principal problema do país. A verdade é que o governo colocou o Brasil no caminho errado --é simples assim. E o Brasil precisa voltar para o caminho certo.

Precisamos de um governo que volte a ser solução.

Entre a indignação, a revolta e o cansaço diante de repetidos absurdos, o sentimento geral dos brasileiros é um só: já deu!

Aécio Neves, senador (MG) e presidente nacional do PSDB

Fonte: Folha Online / ITV

Renato Janine Ribeiro: Entre a festa e a violência

Políticos ignoram protestos de rua do ano passado

Será por acaso que o ano começou com os rolezinhos de janeiro e prosseguiu com os black blocs em fevereiro? Antes do carnaval, reza uma frase mais espirituosa do que verdadeira, nada acontece no Brasil. Pois aconteceu, sim. Primeiro, a festa dos pobres entrando, em multidões, nos shopping centers, não envergonhados, mas orgulhosos de ocuparem esses templos do consumo, dos quais eram barrados por seguranças da mesma classe social que eles. E depois as manifestações violentas de minorias, provavelmente de classe média, contra "tudo o que está aí". Essa expressão nem foi usada, mas não precisava.

Minha tese é que o Brasil está reclamando, ainda que de maneira confusa, porque as exigências inéditas levadas às ruas de maio a julho de 2013 não foram atendidas, ou não deram os frutos esperados. Sim, não se melhora do dia para a noite o ônibus, o metrô, o trem de subúrbio, o hospital, a escola, a polícia. Mas as pessoas sequer sentem as mudanças começando. Tudo isso dá uma sensação de déjà vu, de repetição. Um ano atrás, era o pedreiro Amarildo, que sumia, hoje é Cláudia da Silva Ferreira, assassinada de maneira cruel. Leiam notícias sobre esses temas: não saberemos dizer quais são do ano passado, quais deste ano. Entre os políticos, o mesmo presidente do Senado que, em pleno período de protestos, usava a FAB para ir a um compromisso de prazer, agora utiliza um jatinho para implantar cabelos.

Seria injusto culpar um único ator político - tão injusto quanto culpar, indiscriminadamente, a todos - pelas promessas não cumpridas de 2013. Em São Paulo, o prefeito Fernando Haddad tentou aumentar o IPTU dos mais ricos, o mesmo que fez o democrata ACM Neto em Salvador, só que o paulistano foi barrado no seu intento pela Fiesp. Por isso, para melhorar o transporte público, a única medida importante que ele pôde adotar foram as faixas exclusivas para ônibus, que de fato reduzem o tempo de viagem de quem usa os coletivos. Mas seria preciso muito mais.

E aí está o problema. Em junho de 2013, a sociedade brasileira passou por um minicurso intensivo de politização dos problemas do cotidiano, que eu e vários analistas comparamos ao maio de 1968 francês. O Brasil tem uma sociedade despolitizada, o que se expressa sobretudo pela constante redução dos problemas políticos a questões morais - como se ser ético fosse "a" qualidade de um homem público, quando não é mais do que sua obrigação. Ser ético é necessário, não é suficiente. Mas nosso debate público foi e é pobre - facilmente descamba para o insulto, a gritaria. E no entanto vivemos um inverno de descontentamento, sim, mas de muita esperança. Foi bonito.

Só que, quando os frutos não vêm, o Brasil retorna a seu funcionamento padrão, ao modo de segurança, como um computador que falha na inicialização e fica na operação básica. Estou cada vez mais convencido de que nosso país oscila entre dois polos do consumo - a festa e a violência. Os rolezinhos são a festa, os black blocs, a violência.

No consumo, literalmente consumimos o objeto, e isso vale tanto para o prazer quanto para o ódio. Consumimos comida, bebida, sexo. Uns consomem pessoas - são os violentos, predadores ou criminosos. O consumo exige sempre mais. Lembro o professor Antonio Candido, anos atrás, comparando já não lembro o quê àqueles dragões de história em quadrinhos, vorazes, que precisam comer toneladas de pão de ló... Pois o consumo é assim: nada o satisfaz, nada dura muito tempo. Por mais que a gente coma, daí a umas horas deseja ou precisa de mais. Idem com o predador. Ele necessita sempre de novas presas. O problema é que o consumo não basta para construir. Ele é fundamental na economia, mas precisa de seu irmão inimigo, a poupança, e também da produção. Na vida social, se não houver educação, o consumo se torna cada vez mais predatório, destrói a natureza, até as relações humanas.

Mas é claro que uma coisa é a festa, a alegria, outra a violência. O que me faz aproximá-las é que ambas, no Brasil, passam ao largo da política. E além disso, este ano, parece que elas vão convergir na Copa do Mundo. Esta era para ser a grande festa nacional. O Brasil é o país do mundo que mais se identifica com o futebol. Seleções europeias podem derrotar a nossa, mas sentimos um misto de obrigação e direito, a cada quatro anos, de disputar, não uma classificação honrosa, mas a vitória. Somos o único país que esteve em todas as Copas, o primeiro a levar a Taça Jules Rimet para sua posse definitiva e, mesmo assim, até hoje sediamos apenas um evento, menos do que o México. Um ano atrás, passaria por louco quem dissesse que a Copa não seria uma enorme festa. Hoje, pode vir a ser o palco de muita violência - neste vaivém constante entre ela e a alegria.

Jorge Amado, jovem, escreveu o romance "O país do futebol". O título era depreciativo. Os protestos atuais contra a Copa podem ser entendidos assim: cansamos de ser o país do futebol. O circo não vai mais preencher a falta de pão. A exigência de padrão Fifa para escolas e hospitais é corretíssima. Mas não endosso a violência nem a sabotagem de um compromisso assumido pelo Brasil. Em outras palavras, me recuso a apoiar a violência contra a festa. Posso, porém, ver a violência nas manifestações deste ano como um sintoma importante: a paciência está acabando. É um risco bastante elevado ignorar essa advertência e continuar o "business" político "as usual". O que me choca mais é a relativa indiferença de tantos políticos a esse esgotamento das expectativas. Enxergam a advertência escrita na parede e nada veem.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

Fonte: Valor Econômico

Ricardo Noblat: Cada qual com seu escândalo

Uma vez que venceu a batalha contra o escândalo do mensalão em 2005 e se reelegeu no ano seguinte, Lula ambicionou o terceiro mandato consecutivo de presidente da República.

Desistiu porque não obteve apoio para a ideia sequer entre petistas cinco estrelas. De resto, sairia muito caro o preço político a pagar para mudar a Constituição e permitir que ele tentasse se reeleger outra vez. Melhor, não.

Agora é Lula quem não quer concorrer ao terceiro mandato. Quem sabe em 2018? Sozinho, Lula é mais esperto do que toda a turma que vive ao seu redor. Com qual discurso justificaria sua candidatura à vaga de Dilma?

Se a presidente vai bem por que abortar a chance de ela concorrer ao segundo mandato? Se vai mal parte da culpa não caberia a quem a escolheu? Não digo a quem votou nela, mas a quem a escolheu?

E quem a empurrou goela abaixo do PT, da maioria dos demais partidos e de uma opinião pública satisfeita com o governo da época? Não foi Lula? Pois é...

Não adianta o PT, partidos da chamada base aliada e empresários assustados com Dilma suplicarem pela volta de Lula.

Descarte-se a hipótese de Dilma se contentar com um único mandato. Quem chega ao poder – qualquer tipo de poder – só abre mão dele obrigado.

Os demais partidos da chamada base aliada sempre podem abandonar Dilma caso surja uma alternativa viável à sucessão dela. O PT não pode. Gostando ou não – e ele não gosta – irá com Dilma para a galera ou para o buraco.

Se o destino for o buraco, Dilma ficará por lá, o PT não. Negociará seu apoio ao próximo governo. A negociação será tanto mais fácil se Eduardo Campos (PSB), governador de Pernambuco, se eleger.

Para quem a aprecia, a política tem lá sua graça.

Até outro dia Campos foi parceiro dos governos Lula e Dilma. Por isso o PT teme enfrentá-lo num eventual segundo turno.

O que dizer de ruim dele que conhece a história do PT, seus pontos fortes e fracos, sua linguagem e seus truques? E, no entanto...

No entanto, se for para perder é preferível perder para Campos. Aécio Neves (PSDB) tem outros compromissos.

A mais recente pesquisa de intenção de voto aplicada pelo IBOPE deu Dilma na frente dos seus possíveis adversários. Se a eleição fosse hoje ela seria eleita no primeiro turno.

Ocorre que a eleição será daqui a seis meses e pouco. Com uma Copa do Mundo pelo meio. Com uma situação econômica que já foi melhor pelo meio. E com cerca de 60% dos brasileiro desejando mudança - total ou parcial.

Ainda haverá pelo meio o escândalo da compra de uma refinaria no Texas. Tendo custado US$ 42,5 milhões a uma empresa belga, a refinaria foi vendida à Petrobras por US$ 1,2 bilhão.

O tamanho do escândalo que aflige Dilma está longe de poder ser comparado ao tamanho do escândalo que afligiu Lula há quatro anos. Mas cada qual tem seu escândalo.

Fonte: O Globo

José Roberto de Toledo: Petrovotos

Na eleição presidencial de 2002, sempre que aparecia o registro de uma pesquisa na Justiça Eleitoral, instituições do mercado financeiro corriam a encomendar a sua. Como a lei manda que uma pesquisa que se pretenda divulgar precisa ser registrada com cinco dias úteis de antecedência, bancos e assemelhados tinham tempo para descobrir antes o que seria publicado - pois pesquisas feitas simultaneamente costumam ter resultados similares. Ganharam muito dinheiro com isso.

O fenômeno acontecia porque Luiz Inácio Lula da Silva era visto como uma ameaça econômica, e o mercado apostava contra ele. Se o petista subia, o real caía frente ao dólar - e vice-versa. Saber que isso iria acontecer um dia antes era uma grande vantagem.

Após dois pleitos - 2006 e 2010 - em que a perspectiva de um presidente petista não implicou oscilação automática do dólar ou da Bovespa, o efeito PT volta a se repetir em 2014. Na semana passada, não foi preciso nem encomendar uma pesquisa própria. Especuladores difundiram boatos falsos de que Dilma cairia no Ibope. Alavancaram assim as ações da Petrobrás e criaram uma oportunidade de lucro, comprando na baixa e vendendo na alta.

A estratégia pode funcionar algumas vezes - porque o mercado acredita que, se Dilma Rousseff perder, o preço da gasolina voltará a subir, e as ações da Petrobrás, a se valorizar. Mas há risco. Se ficar evidente que especuladores apostam contra a reeleição da presidente e ainda ganham dinheiro com isso, a petista pode posar de vítima e explorar isso na campanha.

Dilma paz e amor. Se prestar atenção às pesquisas e aos sinais crescentes de insatisfação, Dilma sinalizará com a possibilidade de promover mudanças em um eventual segundo mandato. Afora quem quer mudar tudo - e, por isso, não vota nela -, a maior parte do eleitorado (37%) gostaria que o próximo presidente mudasse muita coisa no governo. Desses, 38% dizem que querem mudanças mas com Dilma na Presidência.

Isso significa que 1 em cada 3 eleitores da presidente é um mudancista moderado. Não atender, mesmo que parcialmente, sua expectativa, é incentivá-lo a pular para o barco da oposição. A maneira mais rápida de fazer isso é assumir um discurso triunfalista, insistir que nada precisa ser mudado e que ninguém é capaz de fazer melhor do que ela.

Sem esse eleitor pró-mudança, Dilma ficaria restrita aos cerca de 30% de simpatizantes petistas e/ou governistas inabaláveis. Esse terço é o patamar mínimo de qualquer candidato do PT a presidente. É necessário, mas insuficiente. Leva ao segundo turno, mas não à vitória. Para se reeleger, Dilma precisa manter do eleitorado independente que já tem e ampliá-lo. Para isso, precisaria moderar o discurso. Tipo: "Paz e amor, meu querido".

Incompatibilidade eleitoral. Marina Silva perdeu mais do que ganhou quando resolveu se unir a Eduardo Campos para se vingar de Dilma. Seu capital político-eleitoral, de origem evangélica e ambientalista, está em queda permanente desde a absorção da Rede Sustentabilidade pelo PSB. Se a dupla fonte de eleitores da ex-presidenciável já era difícil de reconciliar, a junção abrupta aos campistas diluiu o que já era pouco consistente. Não deu liga.
Nos cenários do Ibope em outubro, novembro e março, a intenção de voto em Marina caiu de 21%, para 16%, para 12%. Seria esperado, se houvesse uma transferência de eleitores para o novo parceiro. Mas isso não ocorreu. No mesmo período, as taxas de Eduardo Campos foram de 10%, 7% e 7%. Marina se enfraqueceu sem reforçar o novo aliado.

O cenário pode complicar ainda mais. Pré-candidato a presidente pelo PSC, o pastor Everaldo já tem 8% de intenções de voto entre evangélicos - com chance de crescer. E o Partido Verde lançou a pré-candidatura de Eduardo Jorge, que pode cooptar eleitores ambientalistas que eram de Marina. Bom para Aécio Neves.

Fonte: O Estado de S. Paulo

Valdo Cruz: Petroblema

A relação da presidente Dilma com a Petrobras, centro da mais nova crise que atingiu o governo, tem duas faces. Uma de causar espanto: a intervencionista, responsável por segurar o preço dos combustíveis, reduzir sua geração de caixa, elevar seu endividamento e derrubar o valor da empresa.

A outra tem feições dignas de elogios. A que reduziu a influência política na estatal, afastou diretores apadrinhados pelo PT e PMDB e nomeou uma técnica para seu comando que refez contratos, cortou gastos e fechou portas suspeitas.

Enquanto ministra da Casa Civil e presidente do conselho de administração da petroleira, Dilma sempre se incomodou com o excesso de autonomia de seus diretores apadrinhados por políticos aliados.

Não é possível dizer que esta tenha sido a causa, mas a encrencada compra da refinaria de Pasadena foi encabeçada por um desses diretores que não contavam com a simpatia dilmista: Nestor Cerveró.

Dependesse dela, fiel a seu estilo de não nutrir muita afeição pelo mundo da política, a diretoria da Petrobras seria mais técnica já no governo Lula. Só que, ali, não era ela quem mandava no pedaço.

Quando virou a dona do Planalto, esperou um ano para reformular a estatal, o que fez no início de seu segundo ano de mandato. Gerou forte descontentamento entre aliados políticos, principalmente petistas, que perderam poder na estatal.

Este é, por sinal, um dos reais motivos do coro "volta, Lula", que os amigos e correligionários do ex-presidente sempre ensaiam quando Dilma faz suas trapalhadas, como a crise com o PMDB e, agora, a confusão em torno de Pasadena.

Essa turma costuma dizer que está fechada com o mundo empresarial nas queixas ao intervencionismo da presidente na economia e que Lula seria melhor candidato.

Pode ser. Mas o verdadeiro motivo é que, na era Lula, a vida era muito mais fácil na partilha do poder.

Fonte: Folha de S. Paulo

Marcus Pestana: As eleições e o modelo de intervenção do Estado

A ação governamental persegue, em geral, quatro grandes objetivos: fortalecimento da democracia (assegurar a liberdade e o funcionamento das instituições), desenvolvimento (geração de renda e emprego), estabilidade interna e externa (controle da inflação e do balanço de pagamentos) e equidade social (justiça distributiva). Se há enorme consenso nos objetivos gerais, a diversidade é grande quando discutimos e praticamos o como fazer. A calibragem das ações e o foco prioritário a cada momento concreto também partem de diferentes leituras da realidade e cardápios de atuação.

Enfim, embora os conceitos rígidos de esquerda, direita e centro nunca tenham sido incorporados de verdade pela maioria esmagadora da população e estejam problematizados no mundo contemporâneo, o cenário de escolhas eleitorais ainda é contaminado pelos vetores políticos e ideológicos que inspiram cada força partidária ou candidatura.

No Brasil, desde a redemocratização, em 1985, conquistamos muita coisa. Liberdade como nunca houve, abertura externa, controle da hiperinflação, distribuição de renda, melhoria de acesso aos serviços públicos, superação de estrangulamentos externos, desenvolvimento moderado. Mas é preciso reconhecer que, no ambiente que antecede as eleições de 2014, predominam duas sensações ainda difusas no inconsciente coletivo: que as conquistas obtidas nesses quase 30 anos desde a Nova República estão ameaçadas e que, por isso, é preciso mudar.

O governo FHC operou e consolidou um dos mais bem-sucedidos planos de estabilização da história mundial. Ficaram vitórias importantes, como o início da modernização da infraestrutura (privatização das telecomunicações) e as políticas de distribuição de renda (valorização do salário mínimo e o Bolsa Escola). E o principal legado: o tripé macroeconômico (câmbio flutuante, austeridade fiscal e metas de inflação).

Lula evitou a armadilha proposta por alguns de se colocar a coisa de cabeça para baixo. Com a colaboração de Antônio Palocci e Henrique Meireles, manteve a base sólida construída. Mas, já ao final do seu segundo mandato, deu lugar a uma faceta populista visando ganhar as eleições com Dilma, flexibilizando os fundamentos do tripé.

Ganhas as eleições, Dilma produziu uma mudança de paradigma, dando lugar a uma ação voluntarista e menos pragmática do que o próprio Lula. E o que assistimos é uma prática governamental que parte de uma visão errada do papel do Estado e do funcionamento do mercado.

É o que poderíamos chamar de intervencionismo atrapalhado e desorganizador. Voluntarismo na política monetária; alinhamento internacional equivocado; expansão insustentável do gasto público; escolha de “campeões globais”, em vez de reformas estruturais, ações pontuais no balcão da Receita e do BNDES; represamento de preços administrados; abandono inicial das parcerias com o setor privado em troca dos PACs da vida. Voltaremos ao assunto.

Marcus Pestana, é deputado federal e presidente do PSDB de Minas Gerais

Fonte: O Tempo (MG)

Paulo Brossard*: Boa fé não faz mal a ninguém

O Estado corre o risco de, ao cabo de certos litígios, ver-se em face de sanções irrecorríveis

Há uma semana, pouco mais, o STF pôs a pá de cal em velha controvérsia entre a União e a Varig, condenando a estatal a pagar pesada indenização à empresa. Fala-se em coisa de R$ 3 bilhões. O processo se arrastou mais de 20 anos e todas as delongas possíveis fazem parte do passado.

Tudo teria decorrido do congelamento imposto à Varig no tocante à atualização de suas fontes vitais, legais e contratuais. Desse modo durante dois ou três anos, salvo engano, e inflação desenfreada, a empresa ficou impedida de reajustar o valor de seus serviços. O resultado foi o que não podia deixar de vir a ser. Decorrido esse longo período os danos teriam chegado à cifra bilionária. Este o fato em sua expressão esquemática.

O caso em si mesmo é relevante, mas ele não se resume a duas entidades, uma estatal e a outra privada, pois enseja a apreciação de um aspecto por vezes ignorado. Entre nós, a administração em vez de evitar abusos, por vezes, parece que deles se utiliza na esperança de ser salvo por obra do Espírito Santo e se esforça por empregar os possíveis recursos protelatórios, até que o litígio perdure por anos e a controvérsia termine com a decisão final transitada em julgado e com ela uma enorme dívida por saldar.

O congelamento de preços é medida rápida e fácil, mas não pode ser senão transitória, o mais breve possível; no entanto, dada a sua comodidade tende a durar o que não deve e não pode. No caso, o resultado foi aprofundar um poço que aumentava dia a dia; a União esperando uma vitória forense que não chegou, enquanto isto, o poço cresceu implacavelmente e com ele o valor da indenização decorrente do abuso administrativo.

Sempre me pareceu que se o homem comum está sujeito às regras ditadas pela seriedade e boa fé em suas relações civis, o Estado está a elas sujeito mais do que ninguém, exatamente por ser o Estado, no entanto, isto nem sempre ocorre.

Outrossim, a Fazenda tem de ter um serviço jurídico modelar, pois se é verdade que ela tem um único cliente, este o maior do Brasil, que é a própria União; em condições de aconselhá-la pelo menos no plano judicial, seja no sentido de sustentar o seu alegado direito ou a recomendar que não insista em uma pretensão infundada e que pode resultar em onerosa.
Aliás, recentemente governos estaduais têm orientado seus defensores judiciais a não recorrer ou não insistir nos feitos em que a jurisprudência dos Tribunais Superiores tenha consagrado orientação divergente da dos Estados. Caso contrário, o Estado corre o risco de, ao cabo de certos litígios, ver-se em face de sanções irrecorríveis, como sucedeu com o caso da Varig.

Enfim, a boa fé não faz mal a ninguém e a natural superioridade da União em relação aos litigantes em geral autoriza que o poder público se sirva da equidade para obter o que, às vezes, o império da lei não atinge.
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Caso de excepcional gravidade, aliás, já denunciado e surpreendentemente sem repercussão proporcional, retornou ao noticiário. A compra pela Petrobras da mal cheirosa refinaria de Pasadena, no Texas, em 2006, ao que tudo indica ainda dará muito que falar e motivos não faltam.

* Jurista, ministro aposentado do STF

Fonte: Zero Hora (RS)

José de Souza Martins: A lei da madeira

Num país em que a pseudocidadania não dá à mulher proteção contra o estupro, valores arcaicos a protegem, a seu modo, com a cultura da vingança e do castigo

Os ataques de homens a mulheres no metrô e nos trens da CPTM mostram quanto ainda estamos longe de reconhecer a mulher como ser de direitos iguais e universais. Os agressores foram, num caso, um universitário, desempregado, residente na periferia. No outro, um técnico de informática e um engenheiro, igualmente jovens, que fotografavam as partes íntimas das vítimas na escadaria do metrô. Colhiam material visual para usar na internet. A Delegacia de Polícia do Metropolitano (Delpom) vem monitorando esse ativismo nas redes sociais. Uma página no Facebook, que se chama "Os Encoxadores" e estimula esse tipo de agressão contra passageiras de trem e metrô, tem mais de 12 mil seguidores. Trata-se, pois, de um movimento coletivo motivado por propósitos perversos e antissociais. Só neste ano, a Delpom já registrou 22 casos de ataques a mulheres em trens e estações, dos quais apenas um, o do universitário, foi classificado como estupro, sendo os demais definidos como importunação ofensiva ao pudor.

Dois dias antes da ocorrência na Estação da Luz houve uma tentativa de linchamento no outro extremo do País, em Boa Vista, Roraima. O sujeito arrastara para um matagal e tentara estuprar uma adolescente que fora levar a irmã à escola e voltava para casa. Ela escapou e pediu socorro, o que provocou o ajuntamento de vizinhos furiosos, que atacaram o estuprador a socos, pontapés e pauladas. Açulados pelas mulheres, os linchadores o despiram e lhe enfiaram um pedaço de madeira no ânus. Desmaiado, sangrando, foi amarrado e arrastado pelas ruas. Alguém filmou a ocorrência e colocou as imagens no YouTube, o que vem se tornando cada vez mais frequente.

A violência contra a mulher, longe de regredir, aumenta. Também modernizada, amplia-se na forma e no alcance, anula direitos lentamente conseguidos. Cada vez mais os agressores agem como se agredir as mulheres fosse um direito, como se a mulher fosse um ser de segunda categoria, mero objeto à disposição do homem. Os casos que vêm ocorrendo no metrô e na ferrovia envolvem como agressores pessoas da classe média, da qual amplo setor chega ao uso dos recursos e equipamentos do mundo moderno sem que sua mentalidade também tenha chegado lá, mesmo tendo curso superior. Chegaram à internet, mas não à civilização. São pessoas que têm uma relação patológica com os meios da modernidade.

Numa sociedade historicamente originária da cultura mutilante e repressiva da escravidão, que se disseminou para todo o conjunto das chamadas classes subalternas, e não só para elas, era de se esperar que a progressiva ampliação da liberdade civil e cidadã encontrasse um obstáculo no próprio novo suposto cidadão. Há muitas manifestações das consequências do desencontro entre o que se era e o que ainda não se é, apesar do progresso. A liberalidade dos tempos atuais, entendida como permissividade, como triunfo do mais forte ou do mais esperto e atrevido contra o mais frágil e simples, criou e difunde a curiosa concepção de que aqui as pessoas só têm direitos, nenhum dever.

O caso de Roraima, no outro extremo, contrasta com a benevolência liberalizante de classificar a agressão contra a mulher como mera importunação ofensiva ao pudor. Não se trata de adotar a lei do cão. O caso de Roraima e de numerosos outros semelhantes envolvendo o linchamento do agressor, documenta antropologicamente que a população, baseada no costume e na tradição, tem uma tolerância bem menor em relação a essa violência e adota extremo rigor no conceito de justiça com que a pune. Embora o índice de mortos e feridos em linchamentos em geral seja quase igual ao registrado em linchamentos motivados por estupro, o índice dos que escapam é de 8,2% num caso e de apenas 2,9% em outro, o que bem indica quanto o estupro é mais violentamente punido em comparação a outros motivos para linchar. É significativo que no caso de linchamentos de presos por estupro por outros presos o índice de mortos e feridos seja de 80%, dois terços dos quais de mortos. Mesmo os presos têm dificuldade em conviver com alguém que tenha praticado esse tipo de crime.

O estupro não é para a população apenas a consumação física da agressão sexual, mas também a violência simbólica do desrespeito. Muito mais grave do que para a classe média adventícia, cujos valores dominantes são os do mundo do consumo e não os do mundo da pessoa, o mundo das coisas e não o dos humanos. Os linchadores tendem a punir por igual tanto o estupro quanto o desrespeito. É que a mulher em nossa cultura tradicional é mais que o ser biológico. É também depositária da sacralidade da reprodução, o que a torna sexualmente intocável, a não ser nos ritos próprios do casamento e da procriação. O que não tira do vínculo sexual tudo aquilo que lhe é próprio e toda a alegria que é própria do amor. Portanto, num país em que a pseudocidadania, mais de discurso do que efetiva, ainda não conferiu à mulher toda proteção a que tem direito, os valores arcaicos da sociedade tradicional a protegem, a seu modo, na cultura da vingança e do castigo definitivo.

José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, de A sociologia como aventura.

Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo