domingo, 9 de março de 2014

Opinião do dia: Eduard Bernstein

Finalmente, recomenda-se o uso de alguma moderação ao declarar guerra contra o “liberalismo”. É certo que o grande movimento liberal dos tempos modernos surgiu, antes de tudo, para vantagem da burguesia capitalista, e os partidos que tomaram o nome de liberais eram ou acabaram por converter-se em simples guardiães do capitalismo.Naturalmente, só pode existir antagonismo entre esses partidos e a democracia social. Mas a respeito do liberalismo, como movimento histórico que foi, devemos considerar o socialismo como seu herdeiro legitimo, não só na sequência cronológica , mas também nas suas qualidades espirituais, como se demonstra alias em toda e qualquer questão de principio em que a democracia social tenha de assumir uma atitude.

Onde quer que um avanço econômico do programa socialista tenha de ser levado a efeito de uma maneira ou sob circunstâncias que ponham em perigo o desenvolvimento da liberdade, a democracia social jamais se esquiva a tomar posição contrária. A segurança da liberdade civil sempre lhe pareceu de uma importância superior à efetivação de algum progresso econômico.

Eduard Bernstein (Berlim, 6 de janeiro de 1850 -Berlim, 18 de dezembro de 1932) foi um político e um dos principais teóricos da social-democracia. Socialismo Evolucionário, p.p. 116-117. Jorge Zahar Editor / Instituto Teotônio Vilela, 1997.

Venezuela tem manifestações contra e a favor do governo

AE - Agência Estado

Opositores e governistas tomaram neste sábado as ruas da capital da Venezuela, Caracas, em uma nova medição de forças. O país vive uma situação tensa por causa das manifestações contra o governo, que ocorrem há mais de um mês. Na sexta-feira, a administração de Nicolás Maduro obteve uma vitória na Organização dos Estados Americanos (OEA), que insistiu na necessidade de diálogo entre as duas partes.

Os manifestantes protestaram contra a inflação elevada, problemas de abastecimento de alguns alimentos e bens básicos e o atraso na entrega de divisas por parte do governo, que afeta o ingresso de importados no país. Milhares de opositores realizaram neste sábado a marcha das "Panelas Vazias" no norte da capital, fazendo ruído com caçarolas e cornetas e portando faixas nas quais se lia "Não tem, não tem. Até quando?". A marcha não pode chegar ao seu destino, a sede do Ministério da Alimentação, porque membros da Guarda Nacional, com equipamento antimotim e tanques, bloquearam o acesso ao local.

Maduro compareceria a evento separado em comemoração ao Dia Internacional da Mulher. O governo convocou uma concentração de apoiadores na Praça Bolívar, no centro de Caracas. Outras autoridades também eram aguardadas no evento.

Marchas contra a escassez de produtos também foram realizadas nos Estados de Zulia, Barinas, Táchira, Carabobo e na ilha de Margarita.

Na sexta-feira, o Conselho Permanente da OEA aprovou uma declaração que conclama todas os envolvidos na situação da Venezuela a respeitar os direitos humanos e as liberdades fundamentais, inclusive as de "expressão e reunião pacífica, circulação, saúde e educação". O documento assinala que o organismo "faz votos de que as investigações tenham uma conclusão rápida e justa", se referindo às 21 mortes em episódios de violência nas mais de quatro semanas de protestos de rua em Caracas e outras cidades do interior do país. Fonte: Associated Press.

Fonte: O Estado de S. Paulo

Governo contabiliza 21 mortos em protestos na Venezuela

Declaração de defensora do povo sobre tortura desperta ira de opositores

Capriles lidera manifestação contra escassez: ‘Repressão não vai acabar com mal-estar social’, diz opositor

O Globo, com agências

CARACAS — Em mais um dia de manifestações contra o governo de Nicolás Maduro, as autoridades da Venezuela anunciaram neste sábado que pelo menos 21 pessoas morreram em incidentes violentos ocorridos durante protestos organizados entre os dias 12 e 26 de fevereiro. Quatro delas foram atribuídas a integrantes das forças de segurança e, segundo o governo, alguns dos suspeitos já estão presos. A divulgação do número fez parte de um relatório preliminar da Defensoria do Povo — órgão de fiscalização da atuação do poder público e cujas atribuições, no Brasil, seriam da alçada do Ministério Público.

A defensora do povo, Gabriela Ramírez, causou polêmica durante o anúncio do balanço ao diferenciar as denúncias de tortura cometida por agentes do Estado das demais agressões perpetradas por integrantes de forças de segurança. Muitos opositores entenderam que Gabriela tentou justificar o uso da tortura, o que ela negou.

— Temos 44 denúncias sobre o direito à integridade física (...). Bom, sobre tortura, fui clara. Recebemos este material da Foro Penal (ONG local que monitora abusos na repressão), vou levar à comissão de tortura para uma análise porque, por exemplo, se jovens são presos e uma pessoa é agredida... A tortura tem um sentido, por isso nós temos que ser muito rigorosos com o uso dos termos — disse a defensora. — Na tortura se inflige sofrimento físico a alguém para obter uma confissão. Temos que diferenciar isso de um tratamento excessivo ou do uso desproporcional da força. Sobre a base de tortura ou de tratamento cruel (...) se estabelece a pena e a proporcionalidade da punição.

Pouco depois do pronunciamento, o vídeo com o trecho sobre tortura já tomava as redes sociais na Venezuela, divulgado de forma indignada por militantes antichavistas e políticos da oposição. O prefeito da região metropolitana de Caracas, Antonio Ledezma, e o deputado Julio Borges pediram a renúncia da defensora do povo. O governador do estado de Miranda, Henrique Capriles, um dos líderes da oposição, também divulgou o vídeo em sua conta no Twitter e pediu que seus seguidores o passassem adiante. Também via Twitter, Gabriela Ramírez se defendeu:

“Para quem crê em tudo o que lê: a tortura é o ato mais abominável em que um fardado pode incorrer! A Venezuela pune os torturadores com penas de 25 a 30 anos. É vital distinguir tortura de tratamentos cruéis para impor penas justas”, publicou.

Segundo Gabriela, a Defensoria do Povo agiu em 600 casos de violência em manifestações com visitas a hospitais, prisões e tribunais. De acordo com a defensora, pelo menos dez das 21 mortes tiveram relação com a montagem de barricadas, comuns em protestos de estudantes opositores, seja por acidentes, seja por “violência deliberada” nos locais onde foram montadas.

Na sexta-feira, a ONG Foro Penal entregou a autoridades venezuelanas um relatório sobre violações de direitos humanos na repressão aos protestos, com denúncias de assassinato, tortura e prisões arbitrárias, entre outros abusos. Segundo dados disponíveis no site da organização, 1.224 pessoas foram detidas em manifestações desde o dia 2 de fevereiro, sendo que 41 continuam na prisão.
A violência na repressão às manifestações tem sido uma das principais reclamações da oposição desde o início da atual onda de protestos contra o governo chavista, surgida há cerca de um mês. Os manifestantes reclamam dos altos índices de criminalidade, inflação e escassez de produtos básicos como leite e derivados, frango e papel higiênico, entre outros.

Neste sábado, Caracas foi palco de um protesto contra a falta de mercadorias liderado por Henrique Capriles, num desafio à administração local, chavista, que não deu autorização para a marcha. De panelas em punho e com cartazes dizendo “não tem, não tem, não tem... até quando?”, os manifestantes tinham como objetivo caminhar até a sede do Ministério da Alimentação, mas foram barrados pela polícia e por militares. Protestos similares foram registrados em outras oito cidades venezuelanas.

— A repressão não vai acabar com o mal-estar social — disse Capriles. — Nicolás tem medo das panelas vazias de nosso povo. Manda centenas de militares contra panelas vazias.
Alguns militantes da oposição, como Zoraida Carrillo, uma aposentada de 50 anos, não demonstraram estar intimidados pela presença de policiais.

— Não vamos sair da rua até que o governo reaja. Somos a pedra no sapato deste governo — disse.
Por sua vez, o governo convocou uma concentração na Praça Bolívar, no Centro de Caracas, para comemorar o Dia Internacional da Mulher. A presença do presidente Maduro e de outras autoridades do governo era aguardada na noite de ontem.

Fonte: O Globo

Eliane Cantanhêde: Itamaraty à sombra

A crise na Venezuela escancara de uma vez por todas: a política externa (como tudo) é exclusividade de Dilma Rousseff, e seu operador é o assessor Marco Aurélio Garcia, principal quadro do PT para a área internacional.

E o Itamaraty? O Itamaraty, como as Forças Armadas, bate continência. Assim como o brasileiro é, antes de tudo, um forte, diplomatas e militares são, antes de tudo, carreiras de Estado que cumprem ordens. Nunca isso ficou tão ostensivo.

Caracas e grandes cidades venezuelanas estão em chamas, acumulando, até a sexta-feira, 20 mortos, 300 feridos e uma multidão de presos --incluindo jornalistas. Não se prega a queda do presidente Maduro, mas ele tem de dialogar e ceder.

O governo brasileiro, porém, prefere olhar o lado de Maduro a arriscar uma visão mais panorâmica que abranja oposição e manifestantes.

Se é assim, os vizinhos tinham de ter apoiado Collor contra os caras-pintadas? Ou depende da cor?

Em entrevista à Telesur, rede de televisão criada por Chávez, o chanceler venezuelano, Elías Jaua, agradeceu o apoio: "Recebemos, por meio de Marco Aurélio Garcia, a mensagem clara e firme do governo do Brasil, rechaçando a violência como forma de fazer política e oferecendo sua colaboração".

Enquanto Garcia, em paralelo às cerimônias de um ano de morte de Chávez, transmitia in loco o apoio ao regime Maduro, o Itamaraty aguardava as ordens em Brasília.

Não se faz mais diplomacia como antigamente, quando recados eram dados, não por um assessor, mas pelo presidente, pelo chanceler ou pelo embaixador no país. A diplomacia cedeu aos partidos.

O apoio do governo do Brasil não foi só retórico, foi prático: ajudou a escantear os EUA de qualquer tipo de negociação e a articular uma reunião da Unasul pró-Maduro.

Resta saber se essa posição do governo é também a do próprio Brasil --ou seja, a dos brasileiros.

Fonte: Folha Online

Mario Vargas Llosa: A liberdade nas ruas

Há quatro semanas, os estudantes venezuelanos começaram a protestar nas ruas das principais cidades do país contra o governo de Nicolás Maduro. Apesar da dura repressão - 20 mortos, mais de 300 feridos reconhecidos até agora pelo regime e cerca de mil presos, entre eles Leopoldo López, um dos principais líderes da oposição -, a mobilização popular continua firme.

Ela semeou pela Venezuela "Trincheiras da Liberdade" nas quais, além de universitários e escolares, há também operários, donas de casa, funcionários de escritório e profissionais liberais, em uma onda popular que parece ter superado a Mesa da Unidade Democrática (MUD), a organização que abrange todos os partidos e grupos políticos de oposição, graças aos quais a Venezuela não se transformou ainda numa segunda Cuba.

No entanto, é evidente que essas são as intenções do sucessor do comandante Hugo Chávez. Todos os passos que ele deu desde que assumiu o poder que lhe foi ungido, no ano passado, são inequívocos. O mais notório deles, a asfixia sistemática da liberdade de expressão. O único canal de TV independente que sobrevivia - a Globovisión - foi submetido a uma perseguição tal pelo governo, que seus donos tiveram de vendê-lo a empresários favoráveis à situação, que agora o alinharam ao chavismo.

O controle das estações de rádio é praticamente absoluto e as que ainda se atrevem a dizer a verdade sobre a catastrófica situação econômica e social do país têm os dias contados. A mesma coisa ocorre com a imprensa independente que o governo está eliminando aos poucos pela privação de papel-jornal.

Entretanto, embora o povo venezuelano quase não possa ver, ouvir nem ler uma informação livre, experimenta na carne a brutal e trágica situação para a qual os desvarios ideológicos do regime - as estatizações, o intervencionismo sistemático na vida econômica, a perseguição às empresas privadas, a burocratização cancerosa - levaram a Venezuela e essa realidade não pode ser ocultada com demagogia. A inflação é a mais elevada da América Latina e a criminalidade, uma das mais altas do mundo.

A carestia e o desabastecimento esvaziaram as prateleiras das lojas e a imposição do tabelamento dos preços para todos os produtos básicos criou um mercado negro que multiplica a corrupção a extremos vertiginosos. Somente a nomenclatura conserva os elevados níveis de vida, enquanto a classe média encolhe cada vez mais e os setores populares são golpeados de uma maneira cruel que o regime trata de amenizar com medidas populistas - estatismo, coletivismo, distribuição de doações e muita propaganda acusando a "direita", o "fascismo" e o "imperialismo americano" pela desordem e pela queda livre do nível de vida do povo venezuelano.

O historiador mexicano Enrique Krauze lembrava há alguns dias o fantástico desperdício do regime chavista, nos seus 15 anos no poder, dos US$ 800 bilhões que ingressaram no país neste período, graças ao petróleo. Boa parte desse esbanjamento serviu para garantir a sobrevivência econômica de Cuba e para subvencionar ou subornar governos que, como o nicaraguense do comandante Daniel Ortega, o argentino de Cristina Kirchner ou o boliviano de Evo Morales, apressaram-se nos últimos dias em solidarizar-se com Maduro e em condenar os protestos dos estudantes "fascistas" venezuelanos.

A prostituição das palavras, como assinalou George Orwell, é a primeira façanha de todo governo de vocação totalitária. Nicolás Maduro não é um homem de ideias, como percebe de imediato quem o ouve falar. Os lugares comuns tornam seus discursos confusos e ele os pronuncia sempre rugindo, como se o barulho pudesse suprir a falta de argumentos. Sua palavra favorita é "fascista", com a qual ele se dirige sem o menor motivo a todos os que o criticam e se opõem ao regime que levou um dos países potencialmente mais ricos do mundo à pavorosa situação em que se encontra.

Sabe, senhor Maduro, o que significa fascismo? Não o ensinaram nas escolas cubanas? Fascismo significa um regime vertical e caudilhista, que elimina toda forma de oposição e, mediante a violência, anula ou extermina as vozes dissidentes. Um regime que invade todos os aspectos da vida dos cidadãos, do econômico ao cultural e, principalmente, é claro, o político. Um regime em que pistoleiros e capangas asseguram, mediante o terror, a unanimidade do medo, do silêncio e uma frenética demagogia por meio de todos os veículos de comunicação na tentativa de convencer o povo, dia e noite, de que vive no melhor dos mundos.

Ou seja, o que está vivendo cada dia mais o infeliz povo venezuelano é o fascismo, que representa o chavismo em sua essência, esse fundo ideológico no qual, como explicou tão bem Jean-François Revel, todos os totalitarismos - fascismo, leninismo, stalinismo, castrismo, maoismo e chavismo - se fundem e se confundem.

É contra essa trágica decadência e a ameaça de um endurecimento ainda maior do regime - uma segunda Cuba - que se levantaram os estudantes venezuelanos, arrastando com eles setores muito diferentes da sociedade. Sua luta é para impedir que a noite totalitária caia totalmente sobre a terra de Simón Bolívar e não haja volta.

Acabei de ler um artigo de Joaquín Villalobos (Como enfrentar o chavismo)no jornal El País, desaconselhando a oposição venezuelana a adotar a ação direta que empreendeu e recomendando que, ao contrário, espere se fortalecer para poder ganhar as próximas eleições. Surpreende a ingenuidade do ex-guerrilheiro convertido à cultura democrática.

Quem garante que haverá futuras eleições dignas desse nome na Venezuela? Por acaso foram as últimas, nas condições de desvantagem da oposição em que transcorreram, com um poder eleitoral submisso ao regime, uma imprensa sufocada e um controle obsceno da recontagem dos votos pelos testas de ferro do governo?

Evidentemente, a oposição pacífica é o ideal na democracia. A Venezuela, porém, não é mais um país democrático e está muito mais próximo de uma ditadura como a cubana do que são, hoje, países como México, Chile ou Peru. A grande mobilização popular que a Venezuela vive ocorre precisamente para que, no futuro, haja ainda eleições de verdade e essas operações não se tornem rituais circenses como eram as da ex-União Soviética ou são as de Cuba, onde os eleitores votam em candidatos únicos, que ganham com 99% dos votos.

O que é triste, embora não surpreendente, é a solidão em que os valentes venezuelanos que ocupam as Trincheiras da Liberdade estão lutando para salvar seu país e toda a América Latina de uma nova satrapia comunista, sem receber o apoio que merecem dos países democráticos ou desta inútil e carcomida Organização dos Estados Americanos (OEA), que, segundo sua declaração de princípios, que vergonha, deveria zelar pela legalidade e pela liberdade dos países que a integram.

Naturalmente, que outra coisa pode se esperar de governos cujos presidentes compareceram, praticamente todos, em Havana, para a cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e para prestar homenagem a Fidel Castro, múmia viva e símbolo animado da ditadura mais longeva da história da América Latina.

Entretanto, o lamentável espetáculo não deve tirar as esperanças dos que acreditam que, apesar de tantos indícios contrários, a cultura da liberdade lançou raízes no continente latino-americano e não voltará a ser erradicada no futuro imediato, como tantas vezes no passado.

Os povos dos nossos países costumam ser melhores do que seus governos. Ali, estão para demonstrar isso os venezuelanos, assim como os ucranianos, arriscando suas próprias vidas em nome de todos nós para impedir que na terra da qual saíram os libertadores da América do Sul desapareçam os últimos resquícios de liberdade que ainda restam. Mais cedo ou mais tarde, eles triunfarão. / Tradução de Anna Capovilla

É prêmio Nobel de literatura

Fonte: O Estado de S. Paulo

Derrota de sistemas autoritários de poder: O Globo / Editorial

A crise da Venezuela e, em menor escala, da Argentina serve de ajuda na defesa da democracia, regime tão criticado, devido ao êxito da China e à Grande Recessão

A destituição, na Ucrânia, por uma revolta popular, de um governo eleito colocou na pauta de publicações internacionais e colunistas as fragilidades, no mundo de hoje, do regime democrático. Aquela ideia surgida dos escombros do Muro de Berlim, pulverizado pela debacle do regime soviético, em 1989, de que o sistema de liberdades de mercados e cidadãos vencera definitivamente o confronto com modelos autoritários, à direita e à esquerda, tem sido de fato abalada.

O tema foi abordado, em profundidade, pela penúltima edição da revista inglesa “The Economist”.

São relacionados dois motivos para o abalo recente da aceitação da democracia como o melhor dos regimes: o sucesso da China, ao resgatar milhões da pobreza por meio de um modelo de capitalismo selvagem de estado sustentado por uma ditadura de partido único, e os efeitos deletérios sobre a imagem do capitalismo causados pela Grande Recessão, deflagrada em Wall Street em 2008, e o rastro que deixou em termos de desemprego e consequente empobrecimento.

É extenso o rol de fracassos, entre eles o desapontamento com a Primavera Árabe, em que déspotas têm sido quase sempre substituídos por outros, até mais sectários. O tema é instigante e crucial, sendo capaz de alimentar intensos debates.

É fato, porém, que nada do que aconteceu nos últimas décadas com a Humanidade é capaz de abalar a fé na democracia, o que não significa isentá-la da necessidade de aperfeiçoamentos. A “Economist”, por exemplo, há mais de 100 anos defensora de princípios democratas liberais, vê com interesse experiências de democracia direta que possam se valer das facilidades digitais de hoje em dia.

Martin Wolf, por sua vez, colunista do jornal, também inglês, “Financial Times”, para frisar o poder do modelo de liberdades, registra que quase cem países são hoje democracias “mais ou menos imperfeitas”, o dobro do número em 1990. Wolf lembra, ainda, que não basta haver eleição para configurar uma democracia, caracterizada por uma “rede complexa de direitos, obrigações e limitações”. Ou seja, “os pesos e contrapesos”. Isso é tão verdade que a Venezuela e seus seguidores construíram um modelo político autoritário por meio de eleições. É claro que sem Justiça e Legislativo independentes não se pode falar a sério em regime democrata.

A boa notícia é que, na América Latina, começa a se esgotar a diabólica fórmula chavista: de acabar a democracia pelo manejo de instrumentos formalmente democráticos (plebiscitos, eleições, etc). O chavismo desmorona pela já conhecida incapacidade de regimes populistas, sempre autoritários, gerenciarem com o mínimo de eficiência suas economias. Se o chavismo quebraria o dono de uma das maiores reservas de petróleo do planeta, não seria a Argentina dos Kirchner, inspirados em Chávez, que teria êxito. A crise dos dois países representa um alento para a democracia representativa, e não apenas no continente.

Vergonhoso apoio a Maduro: O Estado de S. Paulo / Editorial

Em vez de assumir suas responsabilidades e pressionar o governo da Venezuela a dialogar com a oposição para superar a violenta crise no país, o governo brasileiro prefere fazer de conta que nada está acontecendo. O assessor especial da Presidência para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, esteve recentemente na Venezuela e disse que há uma "valorização midiática" dos confrontos. "O país não parou, as coisas estão funcionando", afirmou Garcia. Não se trata de autismo, mas de uma estudada farsa, cujo objetivo é fazer crer que Nicolás Maduro tem a situação sob controle e que as manifestações só são consideradas importantes pelos "veículos de comunicação internacionais".

Desse modo, o governo petista continua a seguir a estratégia de desmerecer os protestos contra o chavismo, como se estes fossem mero alarido de quem foi derrotado nas urnas, e não uma legítima expressão de descontentamento com os rumos que o país tomou nos últimos anos. Essa política explica por que o Brasil aceitou subscrever a indecente nota do Mercosul que criminalizou os oposicionistas venezuelanos.

Enquanto Garcia finge que tudo não passa de invenção da imprensa - segundo ele, Maduro vai se encontrar com jornalistas estrangeiros para "aclarar os fatos" -, a situação na Venezuela se deteriora a cada dia. Um dos mais importantes sinais de que a desestabilização pode estar se espalhando inclusive entre os militares foi a destituição de três coronéis da Guarda Nacional Bolivariana. Eles são acusados de criticar a repressão aos manifestantes.

Além disso, em inegável tom de confronto, Maduro ordenou, durante um desfile militar, que as milícias chavistas dissolvessem barricadas erguidas por manifestantes. Esses grupos paramilitares, que agem impunemente à margem da lei, são justamente a vanguarda da repressão oficial aos manifestantes. O número de mortos em um mês de protestos já chega a 20, e há inúmeras denúncias de violações de direitos humanos por parte das forças governistas.

Foi diante desse quadro que um grupo de ex-presidentes latino-americanos, entre os quais Fernando Henrique Cardoso, decidiu publicar uma carta na qual critica a "repressão desmedida" contra "manifestações estudantis de protesto pacífico" e cita, com preocupação, os testemunhos de "tortura e tratamento desumano e degradante por parte de autoridades". A mensagem exorta Maduro a, "sem demora", criar condições para o diálogo com a oposição, pedindo o "fim imediato" da perseguição a estudantes e dirigentes oposicionistas, o fim da hostilidade à imprensa independente e a libertação dos detidos nos protestos, em especial do líder Leopoldo López - acusado pelo governo de ser o principal articulador dos protestos.

Era essa a mensagem que deveria constar das manifestações da diplomacia brasileira em relação à crise venezuelana, e não o cinismo de quem acha que nada está acontecendo. Mas o governo petista prefere endossar a beligerância de Maduro - que rompeu relações com o Panamá apenas porque esse país sugeriu uma reunião da Organização dos Estados Americanos (OEA) para discutir a situação. A OEA, como se sabe, é para os chavistas o equivalente à encarnação do diabo, por ter os Estados Unidos como membro.

Conforme informou Marco Aurélio Garcia, a única instância aceitável de diálogo para Maduro é, claro, a União de Nações Sul-americanas (Unasul) - aquela que, em sua última reunião de cúpula, exaltou o "impulso visionário" do falecido caudilho Hugo Chávez para a criação da entidade e que é atualmente presidida pelo notório Dési Bouterse, ex-ditador e atual presidente do Suriname, procurado pela Interpol por narcotráfico.

Sem poder contar com os países vizinhos mais importantes para constranger Maduro a interromper a violência e negociar de fato, resta à oposição seguir a prudência de Henrique Capriles, seu principal líder. Para ele, embora os protestos sejam legítimos, a única solução para a crise é a "saída eleitoral", porque "a maioria do país apoia a Constituição e quer viver numa democracia".

Miriam Leitão: A Rússia nasceu em Kiev

A crise da Ucrânia é grave e complexa. Bem mais do que se poderia supor pela reação inicial dos Estados Unidos ao propor sanções econômicas. “Ninguém pode isolar a Rússia”, diz o embaixador Ronaldo Sardenberg, que já representou o Brasil em Moscou na época da União Soviética. Os dados de comércio e energia mostram como é forte o entrelaçamento com a Europa.

A Alemanha e a Rússia têm um comércio bilateral que no ano passado chegou a US$ 106 bilhões, isso é praticamente um quarto de todo o comércio do Brasil com o mundo, para se ter uma ideia. Desde o acidente de Fukushima, a Alemanha desativou sete de suas usinas nucleares e aumentou a importação de gás dos russos. Hoje, 40% de todo o gás que o país consome são fornecidos pela Rússia, origem também de 25% do gás consumido na Europa. Metade dele passa pela Ucrânia. Mas até isso é dizer pouco da complexidade aterradora desse evento.

— Rússia e Ucrânia têm uma longa e tumultuada história. A Rússia nasceu em Kiev (foram um país só nos séculos IX e XII). Foi a primeira capital e só depois foi São Petersburgo, e, por fim, Moscou. A Crimeia foi doada por Nikita Krushev à Ucrânia. Na época, não tinha grande valor. Hoje, é uma península com turismo dinâmico, além de ser estratégica para a Rússia. A Ucrânia foi a sede da resistência aos soviéticos, e o Exército Vermelho só a derrotou em 1930. A população ucraniana em grande parte é russa. No século XIX, houve a guerra da Crimeia, que opôs a Rússia às potências do Ocidente. Enfim, nada é simples nesse caso e tudo tem profundas raízes históricas — diz o embaixador.

Do ponto de vista diplomático, a decisão do Parlamento da Região Autônoma da Crimeia de propor referendo deixou o Ocidente sem argumento. Como os defensores da solução democrática, de que se ouça o povo, pode ser contra ouvir o povo? A tese de que o referendo é contra leis internacionais é muito fraca.

— A Rússia não é mais poderosa como foi quando União Soviética, mas seus intensos laços econômicos com a Europa, a dependência energética, tornam impossível a proposta do isolamento que a diplomacia americana propôs. A Alemanha, por sua vez, além dos interesses econômicos e energéticos não vê com bons olhos a interferência americana na Europa, na qual ela hoje tem comando — lembra.

O governo impopular da Ucrânia foi derrubado pelas manifestações de rua. Não conseguiria se manter. Mas Vladimir Putin diz que foi um golpe de Estado contra a ordem constitucional. A biografia de Putin não o faz mestre nesse assunto. Quem foi chefe da KGB nunca será verdadeiramente um democrata. Lá não se ensinava essa disciplina. Por outro lado, a diplomacia russa comandada por Serguei Lavrov tem demonstrado enorme competência em vários casos recentes; enquanto a diplomacia americana exibe nesse caso uma visão superficial da complexidade dos eventos.

A Rússia, por sua vez, já é parte do sistema financeiro internacional e é, portanto, punida ou premiada pelos fluxos de capitais, dependendo da conjuntura. Na semana passada, ela teve mais uma demonstração disso com seu esforço de vender US$ 11 bilhões num único dia para segurar a desvalorização do rublo e ainda viu a bolsa despencar. Ela tem enormes reservas cambiais — calculadas em US$ 493 bilhões — mas sofreu uma fuga de capitais de US$ 60 bilhões no ano passado. A alta de juros de 1,5 ponto percentual anunciada pelo BC russo na segunda-feira vem na hora em que se projeta o crescimento de apenas 1% do PIB para este ano.

A Ucrânia está exposta a uma crise econômica de grandes proporções. Segundo a consultoria inglesa Capital Economics, a Ucrânia tem uma necessidade de financiamento externo de US$ 80 bilhões este ano e tem apenas US$ 15 bi de reservas. Precisa de um aporte urgente de US$ 25 bilhões e uma missão do FMI já foi para o país. Ocidente e Rússia oferecem ajuda do mesmo tamanho: € 12 bilhões. Não por acaso: disputam influência no país que dá à Rússia entrada no Mar Negro e passagem para o gás.

— Não se está discutindo a Ucrânia, mas sim até que ponto vai a área de influência da Rússia — disse o embaixador Ronaldo Sardenberg.

Nesse tabuleiro complexo, o melhor é não subestimar o conflito e torcer por uma saída diplomática. Sem isso, haverá um centro de instabilidade político-militar do lado da Europa, quando ela começa a se recuperar da crise econômica.

Fonte: O Globo

Hora da Frieza

Pressão sobre a Rússia na crise com a Ucrânia pode levar a ‘situação pior que qualquer outra presenciada na Guerra Fria’, diz especialista

John Judis - The New Republic

Na sexta-feira, quando o governo de Kiev anunciou que guardas de fronteira ucranianos já estimavam em 30 mil o número de militares russos de prontidão na Crimeia, a temperatura subiu de vez entre os dois países. Enquanto isso, esforços dos EUA e da União Europeia para esfriar os ânimos na região continuaram desastrados e insuficientes. Essa é a opinião do presidente do Center for the National Interest e editor da revista especializada em política externa The National Interest, o moscovita Dmitri K. Simes.

Na entrevista que você lê a seguir - concedida ao escritor e jornalista americano John Judis, editor sênior do The New Republic -, Simes, que presidiu o Center for Russian and Eurasian Programs no Carnegie Endowment for International Peace e dirige um programa centrado na União Soviética na Universidade John Hopkins, alerta que "ecos de 1914" e de uma nova Guerra Fria podem se fazer ouvir se o Ocidente não agir com mais estratégia e menos verborragia na condução da crise que representa, segundo ele, "uma situação muito grave para os EUA".

O que está acontecendo na Ucrânia? É provável o cenário de uma guerra civil?

Acho que uma guerra civil é improvável, não impossível. Ficou muito claro que a Crimeia está sob controle russo e isso dificilmente mudará. Não há nada que possa ser feito no caso, exceto negociar. E se Moscou utilizar a força na região pode haver uma escalada perigosa do conflito. Mas a presença da Rússia não significa ainda que a Crimeia se tornará parte da Rússia. Tivemos um sinal positivo no início da semana, quando o novo primeiro-ministro da Crimeia anunciou que adiaria o referendo sobre o estatuto da península - declaração claramente coordenada com o Kremlin. De modo que esta pode ser uma oportunidade, se quisermos aproveitá-la, de negociar sobre o que trataria exatamente o referendo (na quinta-feira, após a realização desta entrevista, legisladores da Crimeia marcaram o referendo para o dia 16/3): uma união com a Rússia, independência plena ou uma autonomia ampliada. A Crimeia provavelmente não será mais parte integral da Ucrânia. Quanto à entrada de tropas russas na região leste do país, ainda considero isso altamente improvável e evitável, mas também vai depender do que o governo de Kiev fará.

Os russos acusam os EUA e a União Europeia de interferência. Como o sr. avalia o comportamento do governo Obama até agora?

Acho que ele tem contribuído para a crise. Porque havia um governo legítimo em Kiev, liderado pelo presidente Viktor Yanukovich - que é uma figura desprezível, incompetente e o principal arquiteto do próprio fim, mas um presidente legalmente eleito. Liderou uma nítida maioria no Parlamento ucraniano. E basicamente os EUA e a União Europeia decidiram se aliar aos manifestantes. E permita-me dizer que se os últimos estivessem usando esse tipo de força e essas técnicas contra um governo amigo não seriam qualificados como manifestantes, mas rebeldes. Ou seja, colocamo-nos do lado desses manifestantes/rebeldes. E os usamos para pressionar Yanukovich a negociar um acordo que os governos europeus endossaram totalmente, com o aval do governo Obama. Quando os rebeldes aproveitaram o motivo do acordo para depor Yanukovich e todo seu governo, aceitamos a situação como se fosse normal destituir à força um governo eleito. Mais de cem deputados da Rada (o parlamento ucraniano), membros do antigo partido no governo, o Partido das Regiões, não compareceram e os deputados do partido que votaram com a oposição tiveram permissão para ingressar no governo. E, embora esses deputados pertencessem ao Partido das Regiões, eram controlados pelos oligarcas pressionados pelo Ocidente a mudar de lado. Assim foi formado o novo governo que assumiu o poder em Kiev. Não podemos ignorar esse processo se quisermos saber por que os russos decidiram interferir agora. Digo isso não para justificar o que Putin fez, os russos não têm direito de usar suas tropas em território de outro Estado. Mas os delitos cometidos pelos russos não devem ser usados como álibi para a incompetência do governo Obama.

Uma das decisões do novo Parlamento foi revogar a lei que estabelecia o russo como segunda língua do país.

Exatamente. E eles também começaram a afastar governadores nas províncias do leste. Esses governadores, naturalmente, foram nomeados por Yanukovich, mas eram russos ou pelo menos falavam russo. Nas províncias do leste a impressão que prevalece é de que o novo governo é hostil à população de língua russa. Foi dito que seria formado um governo de coalizão na Ucrânia. Mas se você observar a composição desse governo, não se trata de coalizão - no máximo de uma coalizão entre a oposição moderada e a oposição radical. Com certeza esse governo não inclui políticos que representam a parte da população que fala o russo. Uma política responsável não desencadearia um processo que levasse a essa cadeia lamentável de eventos. Havia uma situação em que Yanukovich era muito impopular em toda a Ucrânia, incluindo a região leste e a Crimeia. Todas as pesquisas de opinião indicavam que muitas pessoas na Ucrânia, e também na Crimeia, estavam dispostas a que a Ucrânia aderisse à União Europeia. Mas isso não significava que todas desejassem cortar seus vínculos com a Rússia. E não significava que esperassem uma investida contra sua língua, nem desejassem que governadores fossem nomeados pelos dirigentes em Kiev, considerados hostis a seus interesses. Essa foi a dinâmica que levou a Rússia a interferir.

O objetivo de Putin é apenas a Crimeia, o leste da Ucrânia ou o país inteiro?

Estou certo de que, do fundo do seu coração, Putin gostaria de se apossar da Ucrânia inteira. Mas é algo totalmente irrealista - e suponho que ele seja suficientemente pragmático para entender isso. No caso da região leste da Ucrânia a situação é muito mais difícil do que na Crimeia porque há muita gente que não quer uma união com a Rússia, ou pelo menos ter uma autonomia muito maior em relação a Kiev. Já outras regiões se opõem tenazmente a isso. Portanto, acho que será muito problemático para a Rússia usar a força basicamente para trazer as províncias do leste ucraniano para sua esfera. Onde seria demarcada uma nova fronteira? Acho que Putin é pragmático o bastante para não fazer algo assim, a menos que o governo de Kiev lance realmente uma grande ofensiva contra os governos locais do leste da Ucrânia. Aparentemente já existem, de acordo com os russos, mais de 100 mil refugiados do leste ucraniano chegando à Rússia. Se esse número se transformar em centenas de milhares, ou milhões, penso que os cálculos de Putin podem ser modificados. Mas neste momento tanto seu plano como sua preferência são de não se envolver no leste da Ucrânia.

O que achou de Obama afirmar que ‘a Rússia pagará alto preço’ se continuar a intervir?

Esta é uma situação muito grave para os EUA. Independentemente da importância da Crimeia para os americanos, que na minha opinião é ínfima, penso que está muito claro que, se permitirmos que a Crimeia se una à Rússia, estaremos enviando uma mensagem bastante séria para todos os outros países da região. Seria claramente um golpe para a credibilidade geopolítica americana na região e mais além. Não nos envolvemos muito na Síria ou no caso do Irã e agora parece que estamos dispostos a aceitar essa humilhação política na Crimeia e no leste da Ucrânia. De modo que não tenho dúvidas de que os Estados Unidos têm a responsabilidade de agir. Mas o que Obama está fazendo é exatamente o oposto do que deveria ter feito, na minha opinião.

Obama está errando por quê?

Em primeiro lugar, o presidente aprecia fazer comentários dissimulados sobre o que é o interesse russo. Mencionou isso duas vezes em seu rápido comunicado, no dia 28. Dizer aos russos o que é do interesse deles é um exercício de futilidade. Dizer que arcarão com um alto custo... Bem, claro que eles sabem qual será o preço a pagar. Tampouco irá intimidá-los ameaçando se retirar do G-8 ou expulsando a Rússia do G-8. Ou, ainda, suspender os preparativos para essa cúpula. Se pretendemos ser sérios, temos de nos perguntar não só o que podemos fazer contra a Rússia. Claro que podemos punir a Rússia, mas é provável também que a Rússia dará o troco. Podemos infligir danos econômicos severos a ela. Podemos fazer coisas que isolariam a Rússia no plano internacional. Mas não devemos nos surpreender se os russos, para compensar os prejuízos e a perda de prestígio, assinarem um acordo de segurança com o Irã e fornecerem ao Irã mísseis S-300 ou talvez S-400, por exemplo. Não devemos nos surpreender se a Rússia oferecer apoio maior ao presidente Assad. Nem devemos nos surpreender se a Rússia introduzir um novo elemento de instabilidade global, assinando um acordo de segurança com Pequim. Há forte interesse de Pequim em fortalecer laços de segurança com a Rússia. Sob muitos aspectos, essa seria uma situação muito pior que qualquer outra que presenciamos durante a Guerra Fria. Ouviríamos os ecos de 1914.

O que deveria ser feito, então?

Acho que precisamos abrandar nossa retórica e refletir seriamente sobre nossos objetivos. Não entendo como uma maior autonomia da Crimeia afetará negativamente interesses nacionais americanos fundamentais. E não vejo como o fato de se proporcionar maior autonomia às províncias do leste da Ucrânia, dando a elas basicamente o que os Estados americanos têm, será algo terrível também. Na verdade, isso promoveria a estabilidade na Ucrânia. Eu tentaria uma aproximação de Putin com o governo ucraniano para negociar um amplo acordo. Diria aos nossos protegidos em Kiev que desejamos ajudá-los e nos esforçaremos nesse sentido - mas que, ao mesmo tempo, eles precisam refrear sua retórica e começar a responder seriamente aos pedidos das províncias do leste. Acho também que precisamos, sem ameaças vazias, mobilizar tropas e instalar algumas forças adicionais nas fronteiras da Otan de modo a incutir algum senso de realidade no Kremlin. Demonstrar que, se a coisa deteriorar de vez, eles podem se ver numa situação muito difícil.

O sr. está dizendo então que os americanos estão fazendo muito alarde e mostrando pouca força?

Estamos de fato fazendo muito alarde e mostrando pouca força. Não estamos na verdade disciplinando os russos. Não estamos definindo o que é importante para nós. Estamos agindo como o Rei Lear: fazendo declarações patéticas que ninguém leva a sério. Quando vi o secretário John Kerry na TV... Na minha opinião, sua apresentação foi lamentável. Ele estava visivelmente enraivecido. E na defensiva. Acusou os russos usando termos muito duros, referindo-se a violações da lei internacional. Sua descrição do processo político na Ucrânia que levou à atual situação foi incompleta e, no melhor dos casos, de má fé. E, depois de falar tudo isso, ele não disse: "Como os russos violaram a lei internacional, ameaçam a segurança internacional, e por causa disto o presidente dos EUA está deslocando suas forças navais para o Mar Negro". A maneira como ele se expressou é o que esperávamos que dissesse como conclusão. Mas ele mostrou pouca força. Retórica não é política e mostrar-se duro não fará com que a Rússia retroceda. O governo Obama terá de fazer algo a que não está acostumado: pensar estrategicamente. Isso significa adotar medidas, preferivelmente sem alarde, para demonstrar nosso compromisso com a segurança dos Estados Bálticos. Significa pensar num fortalecimento do Exército ucraniano, se o conflito deteriorar. Mas significa também evitar ameaças públicas vazias, respeitando a dignidade da Rússia e se abstendo de criar uma impressão de que ou é do nosso jeito ou não existe solução. (Tradução de Terezinha Martino)

Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo

Henry Kissinger: Como resolver a crise ucraniana

O tema dos debates públicos na Ucrânia é o confronto. No entanto, sabemos para onde estamos nos encaminhando? Em toda a minha vida, presenciei quatro guerras que começaram com grande entusiasmo e apoio da população e, em todas, não sabíamos como terminariam. Em três delas, nos retiramos unilateralmente. O teste, em termos políticos, é como uma guerra termina, não como começa.

Com muita frequência a questão ucraniana é colocada como uma declaração de intenção: se o país adere ao Ocidente ou à Rússia. No entanto, se a Ucrânia pretende sobreviver e prosperar, não pode se tornar um posto avançado de um lado contra o outro. Deve funcionar como uma ponte entre ambos.

A Rússia tem de entender que forçar a Ucrânia a se tornar um país satélite e mexer novamente nas fronteiras russas, condenará Moscou a repetir sua história de ciclos que se concretizam, de pressões recíprocas com Europa e EUA.

O Ocidente precisa entender que, para a Rússia, a Ucrânia jamais será apenas um país estrangeiro. A história russa começou na chamada Kieva-Rus. A religião russa se propagou a partir dali. A Ucrânia fez parte da Rússia durante séculos e suas histórias já estavam entrelaçadas antes disso.

Algumas das mais importantes batalhas pela liberdade russa, a começar pela Batalha de Poltava, em 1709, foram travadas em solo ucraniano. A Frota do Mar Negro, o meio de a Rússia projetar o poder no Mar Mediterrâneo, está baseada, mediante um arrendamento de longo prazo, em Sebastopol, na Crimeia. Até mesmo dissidentes famosos, como Alexander Soljenitsyn e Joseph Brodsky, insistiam que a Ucrânia era parte integral da história russa e, de fato, da Rússia.

A União Europeia precisa admitir que sua demora e a subordinação do elemento estratégico a políticas domésticas nas discussões sobre a inserção da Ucrânia no bloco contribuiu para transformar a negociação numa crise. A política externa é a arte de estabelecer prioridades.

Os ucranianos são o elemento decisivo. Eles vivem num país com uma história complexa e poliglota. O lado ocidental foi incorporado à União Soviética, em 1939, quando Stalin e Hitler dividiram os botins de guerra. A Crimeia, com 60% da população russa, tornou-se parte da Ucrânia apenas em 1954, quando Nikita Kruchev, ucraniano de nascimento, recebeu-a dos cossacos no âmbito das comemorações dos 300 anos de um acordo firmado pelos russos com eles.

Na região ocidental, a maioria é católica. No leste, a população adota a religião ortodoxa russa. Do lado ocidental, a língua falada é o ucraniano. Do lado leste, a maioria fala russo. Qualquer tentativa de uma ala da Ucrânia de dominar a outra levaria eventualmente à guerra civil ou a uma ruptura. Tratar a Ucrânia como parte de um confronto entre Leste e Oeste seria destruir por décadas qualquer perspectiva de unir a Rússia e o Ocidente - especialmente Rússia e Europa - em um sistema internacional cooperativo.

A Ucrânia é um país independente há 23 anos. Antes, manteve-se sob algum tipo de domínio estrangeiro desde o século 14. Não é de surpreender que seus líderes não tenham aprendido a arte do compromisso, e menos ainda a perspectiva histórica.

Rivalidade. A política da Ucrânia pós-independência demonstra claramente que a raiz do problema repousa nos esforços dos políticos ucranianos para impor sua vontade às partes recalcitrantes do país, primeiro por uma facção, depois por outra. Essa é a essência do conflito entre Viktor Yanukovich e sua principal rival política, Yulia Tymoshenko.

Eles representam as duas alas da Ucrânia e não se mostraram dispostos a dividir o poder. Uma política inteligente com relação à Ucrânia deve ser no sentido de buscar uma maneira de as duas partes do país cooperarem uma com a outra. Devemos buscar a reconciliação, não o controle de uma facção.

Rússia e Ocidente, muito menos as diversas facções na Ucrânia, não agiram com base nesse princípio. E tornaram a situação ainda pior. A Rússia não imporia uma solução militar sem se isolar em um momento em que muitas das suas fronteiras já são precárias. Quanto ao Ocidente, a demonização de Vladimir Putin não é uma política, mas um álibi para sua ausência.

Putin deve entender que, sejam quais forem suas queixas, optar pela imposição militar só produzirá uma outra Guerra Fria. Os EUA, por seu lado, devem evitar tratar a Rússia como uma anomalia, um país que precisa ser ensinado pacientemente a respeitar as normas de conduta estabelecidas por Washington.

Putin é um estrategista sério - em termos de história russa. Compreender os valores e a psicologia dos americanos não é o seu forte. Tampouco compreender a história e a psicologia russa é um ponto forte dos estrategistas políticos dos EUA.

Os líderes de todos os lados devem voltar a examinar os resultados e não competir em termos de posições. Eis a minha noção de um resultado compatível com os valores e os interesses no campo da segurança de todos os lados.

Primeiro, a Ucrânia deve ter o direito de decidir livremente suas associações políticas e econômicas, inclusive com a Europa. Em segundo lugar, Kiev não deve aderir à Otan, posição que assumi há sete anos, quando o assunto emergiu pela última vez.

Em terceiro, a Ucrânia deve ser livre para criar um governo compatível com o desejo manifesto do seu povo. Líderes ucranianos sensatos precisam adotar uma política de reconciliação entre as várias partes do seu país. No plano internacional, devem assumir uma posição comparável à da Finlândia. Este país não deixou nenhuma dúvida quanto à sua brava independência e coopera com o Ocidente em muitos campos, mas atentamente evita qualquer hostilidade institucional no tocante à Rússia.

Por fim, é incompatível com as regras da ordem mundial vigente uma anexação da Crimeia pela Rússia. No entanto, deve ser possível manter o relacionamento da Crimeia com a Ucrânia em bases menos tensas. Para isto, a Rússia reconheceria a soberania da Ucrânia sobre a Crimeia. A Ucrânia reforçaria a autonomia da Crimeia em eleições realizadas na presença de observadores internacionais. O processo incluiria a eliminação de qualquer ambiguidade no tocante ao estatuto da Frota do Mar Negro, em Sebastopol.

Esses são princípios, não prescrições. Pessoas que conhecem bem a região saberão que nem todos serão de agrado de todas as partes. O teste não pretende ser uma satisfação absoluta, mas uma insatisfação equilibrada. Se uma solução com base nesses ou em outros elementos comparáveis não for encontrada, a tendência ao confronto irá se acelerar. O que poderá ocorrer muito em breve. (Tradução: Terezinha Martino)

Henry Kissinger é ex-secretário de Estado dos EUA entre 1973 e 1977.

Fonte: O Estado de S. Paulo, 7/3/2014.

No ano dos protestos, número de filiações a partidos despencou

TSE registrou em 2013 somente 136 mil novas inscrições, o menor contingente dos últimos 5 anos

Manifestantes na Cinelândia e Avenida Rio Branco durante as “Jornadas de Junho”Hudson Pontes/Agência O Globo/17-06-2013

SÃO PAULO A filiação de brasileiros a partidos políticos despencou no Brasil em 2013. Dados divulgados pelo Tribunal Regional Eleitoral (TSE) mostram que, desde 2009, nunca foi tão baixo o número de pessoas que se engajaram na atividade partidária no país. No ano em que uma onda de protestos populares tomou as ruas em diversos estados, foram contabilizadas somente 136 mil novas filiações. Isso representa quase metade do novo contingente registrado em 2012 (222 mil) e menos de 10% das adesões de cinco anos atrás, quando 2,5 milhões entraram para algum partido.

Em percentuais, significa dizer que o ritmo de crescimento das filiações caiu de um patamar de 22% em 2009 para 0,9% em 2013. O TSE vem registrando há alguns anos quedas constantes. A mais recente estatística do TSE, divulgada em janeiro, apontou que, atualmente, 15,3 milhões de brasileiros estão filiados aos 32 partidos do país. Essa contabilidade é feita anualmente, depois que as legendas encaminham ao tribunal, em outubro, a relação de seus militantes.

A desaceleração de filiações não é um fenômeno novo nem restrito ao Brasil, segundo especialistas em partidos políticos. Mas, para o professor Lúcio Rennó, do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), chama a atenção a velocidade com que essas taxas caíram no país nos últimos anos.

— Uma hipótese é de que isso seja resultado da acentuação do processo de perda de credibilidade das formas tradicionais de engajamento político. Embora seja uma tendência mundial, ela se mostraria mais aguda no Brasil pelos episódios de corrupção e pela insatisfação com o desempenho dos partidos — afirmou Rennó.

Não há como saber, por enquanto, se essa queda expressiva em 2013 tem relação com as manifestações que pararam as ruas do país, num claro recado de descontentamento com o sistema político e seus representantes.

— Somente uma análise mais detalhada poderá responder a essa questão — disse Rennó.
Segundo o cientista político Marcus Figueiredo, pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o incremento do número de militantes costuma ser sazonal. Ele explicou que é após um ano eleitoral que os partidos registram os crescimentos mais expressivos de filiados — resultado da exposição e da mobilização das siglas durante a campanha.

— Não estamos falando aqui de filiação de quem quer ser candidato, mas de pessoas que querem se engajar. As eleições estimulam esse tipo de participação — disse Figueiredo.

Mas as estatísticas oficiais mostram que isso não ocorreu no último pleito, em 2012. No ano da eleição, o aumento do número de filiados foi de 1,49% e, no ano seguinte, de 0,9%.

— A hipótese mais plausível é que tenha crescido o desinteresse por atividades partidárias, e as demonstrações nas ruas são um sintoma dessa perda de interesse — avaliou Figueiredo.
PMDB e PSDB perderam filiados

Entre os cinco maiores partidos, PMDB e PSDB foram os que tiveram o pior desempenho no ano passado. Ambos não registraram novos militantes. Pelo contrário, perderam filiados. O exército tucano registrou cerca de 4 mil baixas, e o do PMDB, 1,3 mil. Se isso foi proveniente de desligamentos ou de atualização cadastral — em casos de falecimento, por exemplo —, as estatísticas do TSE não esclarecem.

O PT foi o único nesse grupo a ter incremento de filiados acima da média nacional nos últimos anos, com 37 mil novos militantes. Para o professor Rennó, isso tem uma explicação:

— Os partidos que estão no governo sempre acabam atraindo mais filiados e simpatizantes do que as legendas de oposição.

Rennó diz que o fato de o país estar registrando a cada ano um número menor de filiações partidárias não significa, necessariamente, um aumento da despolitização da sociedade. Para ele, os brasileiros estão procurando outros canais de representação, como movimentos sociais e organizações não governamentais.

— Em outros países, estamos assistindo a esse mesmo fenômeno. Os partidos hoje têm mais competidores. Não vejo isso como uma ameaça à democracia e sim um aprofundamento de outros mecanismos de pressão política.

Marcus Figueiredo apontou um outro dado que confirma a avaliação do colega da UnB. Segundo ele, o percentual de brasileiros filiados a partido político tem se mantido estável em torno de 1% do eleitorado nacional.

— Não vejo isso como ameaça porque continuamos tendo novas filiações, embora em ritmo menor.
Para os dois, com a queda do número de novos adeptos cada vez menos as legendas exercerão a função de interlocutoras com a sociedade.

Fonte: O Globo

‘Achar que vão me isolar é um erro de avaliação’, diz Eduardo Cunha

Líder do PMDB na Câmara voltou a usar o Twitter para criticar o governo

RIO - O líder do PMDB na Câmara, Eduardo Cunha, afirmou que seu Twitter foi invadido na sexta-feira. Neste sábado, ele voltou a usar o microblog para atacar o governo e disse que é um erro de avaliação do governo achar que vai conseguir isolá-lo.

“Vários me procuraram para perguntar a resposta que eu achava melhor, pus panos quentes e pedi moderação. O número de insatisfeitos é maior. Com certeza é mais do que a metade. Conheço a minha bancada e sei o que cada um pensa. Por isso, achar que vão me isolar é um erro de avaliação de quem não tem noção do problema real. Apenas verbalizo o que escuto da bancada”, afirmou
Eduardo Cunha em três mensagens postadas no Twitter neste sábado.

Ao falar sobre a invasão de seu perfil no microblog, escreveu:

“Bom dia a todos. Estou preocupado com a invasão do meu twitter, mas parece que, como o servidor está no exterior, não conseguiram o intento. E só mais um motivo para ficar contra esse projeto do marco civil que obriga a ter data centers no país. Imaginem só o que no farão?”. postou.

Peemedebistas ameaçam votar com a oposição para derrubar o relatório do deputado Alessandro Molon (PT-RJ) sobre o marco civil da internet.

A crise entre PT e PMDB tem se agravado nas últimas semanas. A pressão dos peemedebistas por mais um ministério se somou à tensão por conta nas disputas nos estados. Para completar, na última semana, começou um guerra de declarações entre o presidente nacional do PT, Rui Falcão, o presidente do PMDB-RJ, Jorge Picciani, e Eduardo Cunha.

Fonte:O Globo

Desempenho da economia é preocupação para ano eleitoral

Governo quer evitar críticas da oposição à área durante campanha

Catarina Alencastro, Luiza Damé

BRASÍLIA A campanha da reeleição será árdua para a presidente Dilma Rousseff. É o que já se diz no Palácio do Planalto e no entorno do governo. Além de administrar uma aliança movediça e enfrentar o ex-aliado Eduardo Campos (PSB), Dilma, que lidera todas as pesquisas de opinião feitas até agora, terá de dar explicações sobre o fraco desempenho da economia e as medidas para o setor.

O discurso da oposição, de explorar a situação econômica, está pronto e é bem conhecido, mas o que de fato preocupa são as insatisfações na base aliada. Desde o primeiro ano de governo, Dilma abriu o pacote de bondades para o setor empresarial, mas nem assim eliminou as críticas ao pífio crescimento do seu governo — um PIB médio de 2% ao ano.

— Dilma deu muitos estímulos para o empresariado, mas deu errado, privilegiando uns setores, irritando outros — comentou um senador aliado.

Diferentemente do que ocorreu com Lula, diz o senador, os empresários não estão com Dilma. O setor privado está muito receoso em apoiá-la. Além disso, o mercado não confia mais no ministro da Fazenda, Guido Mantega. Para reforçar o setor, a presidente levou para o Planalto o ministro Aloizio Mercadante, que deverá fortalecer a articulação com investidores.

Em ano eleitoral cresce a preocupação do governo em conter a desconfiança dos investidores. Daí a decisão de Dilma de criar um movimento de austeridade. Há uma tensão com a possibilidade de o Brasil ter rebaixado pelas agências de risco o grau de investimento. Ao anunciar o corte de R$ 44 bilhões no Orçamento, o Planalto quis mostrar que age com responsabilidade fiscal.

Setores da oposição dizem que mesmo que o governo trabalhe para passar uma imagem de controle, a situação econômica é muito ruim e tende a ser percebida cada vez mais pela população.

— O governo vai usar a demagogia para tentar se eleger, mas a economia não está boa. A situação tende a piorar e isso terá reflexos na eleição. Com o discurso de que a inflação está sob controle e há geração de empregos, ela ameniza um pouco, mas o que os investidores estão vendo há tempos vai descendo para a população — diz o deputado Emanuel Fernandes (PSDB-SP).
O discurso de Dilma é repetido pelos aliados.

— Não conheço eleição presidencial fácil. Evidentemente que a economia sempre pesa. Mas o nosso governo reforçou o emprego e a renda — argumenta o deputado Ricardo Berzoini (PT-SP).
Outra preocupação do governo é ter um melhor controle do dinheiro repassado para estados e municípios, fazendo com que ele beneficie a população.

Fonte: O Globo

É preciso crescer com qualidade de vida’, diz Lara Resende

Para o economista, modelo de desenvolvimento baseado apenas em expansão de PIB e consumo material não se sustenta

Alexa Salomão e Ricardo Grinbaum

SÃO PAULO - Na seara econômica, André Lara Resende é uma referência, entre outras razões, por ter participado da elaboração do Plano Real. Ainda assim, afastou-se do trabalho cotidiano de um economista. O neto do professor de gramática e memorialista Antônio Lara Resende e filho do jornalista e escritor Otto Lara Resende voltou-se às letras e à reflexão. Em seus artigos, defende um novo modelo de desenvolvimento, orientado ao bem-estar coletivo e sustentado pelo setor de serviços em áreas como educação e saúde.

"A partir de certo nível de renda, onde com certeza já nos encontramos, a qualidade de vida não está mais necessariamente associada ao consumo material", diz ele na entrevista que segue. Suas convicções o aproximaram da pré-candidata à Presidência Marina Silva, em sua avaliação a pessoa que na atual cena política tem a visão de mundo para implantar o novo modelo de crescimento. A íntegra da entrevista está disponível na internet, no link indicado ao pé desta página. 

O governo de FHC ficou conhecido como o da estabilidade, o do Lula, pela distribuição de renda. Qual seria a cara do governo Dilma e qual deveria ser em caso de reeleição? 

André Lara Resende: Nem todo governo deixa necessariamente a sua marca. O governo Dilma não está à altura dos dois governos anteriores que, por mais diferente que tenham sido, tinham carisma e personalidade definida. O governo Dilma tinha a pretensão da eficiência executiva para dar um novo salto desenvolvimentista. Fracassou porque tem uma visão anacrônica, tanto dos objetivos, como dos métodos para alcançá-los. Acredita que o desenvolvimento ainda dependa da industrialização, voltada para o mercado interno e liderada pela ação do Estado, como na metade do século passado. Acredita também na gestão de comando e controle. Mas no mundo contemporâneo, o desenvolvimento é necessariamente via integração internacional, e a gestão de empreitadas, a cada dia mais complexa, só é possível através da delegação, inserida numa cultura baseada no exemplo e no carisma.

Muitos estudiosos dizem que o Brasil vive um processo de desindustrialização. Como o senhor vê a questão e o que deve ser feito em relação à produção industrial? 

André Lara Resende: O processo de desenvolvimento econômico passa primeiro por uma fase de industrialização e urbanização, com uma correspondente redução do peso do setor primário na economia. Numa segunda fase, já com a industrialização consolidada e uma economia mais sofisticada, cresce o peso do serviços. A indústria pesada, de velha tecnologia, desloca-se para onde ainda há mão de obra barata no mundo. Para seguir crescendo, o país precisa renovar sua indústria, ser capaz de absorver e de produzir tecnologia de ponta. Não há como dar esse salto sem a combinação de um sistema educacional de alto nível e a integração comercial com o resto do mundo. Passa-se do protecionismo à indústria nascente, voltada para o mercado interno, ao estímulo à indústria de ponta, voltada para a exportação. É o que deveríamos fazer: integrar o país à economia mundial, absorver tecnologia de ponta, aumentar a produtividade e as exportações industrializadas, e simultaneamente, repensar a educação de base com objetivos de longo prazo.

Há economistas que dizem que o Brasil está preso numa armadilha de baixo crescimento. O senhor concorda com esse ponto de vista? 

André Lara Resende: O país tem crescido bem menos do que se espera, é verdade. Alguns analistas chamaram de a Armadilha da Renda Média, o fato de que, depois de atingir um estágio intermediário de renda e desenvolvimento, muitos países parecem ter dificuldades de deslanchar e finalmente encostar nos países do primeiro mundo. Para sair da pobreza absoluta, crescer e atingir um mínimo de desenvolvimento, basta ser capaz de criar um excedente para ser investido. Pode não ser fácil para sociedades onde a renda e o consumo são extremamente baixos, mas a fórmula é conhecida: poupar e investir, aproveitando a tecnologia de domínio público, não necessariamente de ponta, desenvolvida nos países mais avançados, e incorporando a população marginalizada à força de trabalho. A partir de um certo ponto - e o Brasil já atingiu esse estágio - a questão se torna mais complicada. Já não basta poupar e investir em capital fixo. Não há mais um excedente de mão de obra barata para ser incorporado ao setor dinâmico da economia. É preciso, então, aumentar o que os economistas chamam de produtividade - a capacidade de produzir mais com menos, de forma mais eficiente, e ganhar competitividade internacional. A absorção de tecnologia já não é tão automática, pois estamos mais perto da fronteira tecnológica. É preciso que a mão de obra, em todos os níveis, do mais elementar ao mais sofisticado, inclusive a da gestão das empresas e dos investimentos, esteja à altura. A chave é a educação. Falar em educação se tornou um clichê, mas como todo clichê é uma verdade que, de tanto repetida sem convicção, perdeu a força. Há uma revolução em curso nos métodos de educação, com a universalização da informática e da internet, mas estamos na contramão. Em lugar de inovar, de fazer uma educação de base de qualidade, optamos por aumentar o número de pessoas com diploma de curso universitários comercializados, onde nada se aprende. Mais um exemplo da nossa insistência em dar mais importância à forma do que à substancia.

O Brasil deve ter um novo modelo de desenvolvimento? O que este modelo deve contemplar? 

André Lara Resende: Acho que não apenas o Brasil, mas o mundo todo precisa rever seu modelo de crescimento. Já não faz mais sentido associar desenvolvimento exclusivamente ao crescimento e ao aumento do consumo material. A partir de certo nível de renda, onde com certeza já nos encontramos, a qualidade de vida não está mais necessariamente associada ao consumo material. O problema da grande desigualdade persiste, é claro, e é urgente ter uma resposta efetiva, mas se o crescimento material não o resolveu, até hoje, em parte alguma do mundo, é porque por si só não vai resolve-lo. Veja o exemplo do automóvel: a notícia de que as vendas de carro caíram sob o prisma do velho crescimento é negativa, mas para quem vive nos grandes centros urbanos, onde usar o automóvel está se tornando impossível, parece-me positiva. Anos atrás, menos produção de automóveis seria inequivocamente negativo. Hoje é, no mínimo, questionável. Temos dificuldade em rever velhos conceitos, mas quando as circunstâncias mudam, é preciso reavaliá-los. Tenho a impressão que o mundo está numa fase de transição. O velho modelo de crescimento consumista já não faz mais sentido, mas a alternativa ainda não está bem delineada. Posso estar sendo vítima da ilusão ufanista, mas tenho a impressão de que o Brasil, tanto pelo estágio de desenvolvimento em que se encontra, quanto pela alegria coletiva criativa, poderia estar muito bem posicionado para sair à frente do novo desenvolvimento. Um desenvolvimento mais baseado na educação, na saúde, no entretenimento, no esporte e na cultura, do que no consumo material. Por isso mesmo, se a melhora de vida vier a se frustrar, ainda que ou sobretudo porque, o consumo material continua a aumentar, podemos passar por ondas de protestos difusos e de revoltas que podem vir a se tornar incontroláveis.

O senhor defende um modelo baseado em menos consumo, mas como se compatibiliza isso com o desejo das pessoas de consumir e com a necessidade de reduzir a desigualdade? O senhor mesmo coloca que os protesto revelam uma ansiedade das pessoas em melhorar de vida ... 

André Lara Resende: Minha interpretação é diferente. Os protestos indicam que há busca por melhor qualidade de vida. À medida que a pobreza absoluta é superada, passa-se a desejar mais qualidade de vida, que não encontrada, leva à uma grande frustração. Apesar de se ter mais renda e poder consumir mais, a vida continua extremamente difícil, um verdadeiro inferno. O hospital público é um desastre, a escola pública não tem qualidade, faltam creches, não há segurança, o transporte público é de péssima qualidade. Apesar de ter renda para comprar um carro, leva-se até quatro horas para chegar ao trabalho, engarrafado no transito. Estas são as questões por trás dos protestos - e não necessariamente a demanda por mais consumo material. Essa frustração não é um problema exclusivamente brasileiro. Há no mundo uma vaga percepção de que a melhora da qualidade de vida não está mais necessariamente vinculada ao aumento do consumo material. Ao contrário, o aumento do consumo material - como no caso do automóvel nos grandes centros urbanos - tornou-se um detrator da qualidade de vida. Durante muitas décadas houve uma alta correlação entre o crescimento do produto e da renda e o bem estar. Se o PIB crescia, embora a melhora fosse mal distribuída, todos melhoravam. Essa correlação já não é verdadeira, mas há uma grande resistência a rever conceitos arraigados. Ao criticar o aumento do consumo material, somos acusados de pretender negar o acesso dos mais pobres ao consumo. O argumento não procede - apesar do crescimento extraordinário do consumo material, a pobreza persiste e a desigualdade até se agravou nas últimas décadas, tanto nas economias emergentes quanto nos países avançados. A solução não é mais consumo. Estudos mostram que menos desigualdade, uma sociedade mais homogênea, é elemento fundamental para a qualidade de vida. Para os mais pobres, é evidente, mas também para os mais ricos a desigualdade é negativa. Viver numa sociedade, homogênea e equânime, onde há empatia com seus concidadãos, é melhor para todos.

As manifestações, então, mostram que as pessoas já percebem a diferença entre ter mais e viver melhor? 

André Lara Resende: Me parece que sim, mas como a alternativa não está bem delineada, fica difícil afirmar. Acredito que nem mesmo os manifestantes saibam claramente o que desejam. Por isso os protestos são desfocados. Deseja-se mais qualidade de vida, mas o que é qualidade de vida? É sobretudo tempo com os amigos, tempo com a família, tranquilidade, ausência de estresse, inserção numa comunidade com a qual se tem empatia. Por isso a melhora do transporte público é a primeira medida para a melhora da qualidade de vida. Reduzir o tempo de deslocamento e o estresse do trânsito, aumentar o tempo com a família e os amigos, significa um ganho inequívoco de qualidade de vida. O automóvel ainda está no imaginário coletivo como símbolo de sucesso, mas é ilusório. O uso do automóvel exige gastos públicos expressivos na infraestrutura urbana. É um subsídio ao uso do transporte individual, recursos públicos que poderiam ter melhor uso. Para abrir avenidas, viadutos e elevados as cidades foram desfiguradas. Ficou quase impossível se deslocar por qualquer outro meio que não o automóvel. Não é fácil mudar o modelo. Veja a resistência aos corredores de ônibus implantados pelo Haddad. Acho que ele está certo, mas a iniciativa provocou indignação. Como a alternativa não está claramente delineada, é importante dar exemplos concretos do que seria a cidade do futuro, depois do automóvel. A High Line de NY é um desses exemplos. Todas as cidades bem sucedidas do mundo são as que têm bons transportes públicos e estão criando alternativas para que se ande a pé, estímulos ao convívio. É o caso de Barcelona, Paris e NY.

Quais outras políticas públicas devem ser adotadas para mudar o modelo de desenvolvimento? 

André Lara Resende: Não tenho a pretensão de fazer uma agenda detalhada, mas antes de tudo é preciso rever o conceito de desenvolvimento. O que se busca? Apenas vender mais, não importa o que? Vamos garantir que todos possam ter mais coisas inúteis, sem descriminar ninguém, ou vamos procurar o bem estar? A busca do bem estar exige revisão das políticas públicas. Rever os objetivos não significa que a renda deva parar de crescer, mas que haveria um mudança na composição do produto, um aumento do peso dos serviços - mais entretenimento, mais esporte, mais educação, mais saúde, mais musica. A demanda por serviços de saúde é infinita. São essas industrias que irão liderar o crescimento do futuro e não as indústrias baseadas no consumo material.

O senhor acha que o governo precisa ter metas a partir de 2015 para o superávit, para a dívida e para o gasto público? 

André Lara Resende: Metas são importantes para o balizamento, tanto do governo, como do setor privado, mas mais importante do que ter metas quantitativas anunciadas, é o compromisso com elas. Creio que é pior ter metas, sem acreditar nelas, do que não tê-las. As três metas a que você se refere dizem respeito ao custo do Estado. O Estado no Brasil tem uma longa história de patrimonialismo, de confundir o seu interesse com o da sociedade. Só em alguns períodos excepcionais houve tentativas de adotar reformas modernizadoras. A tendência secular é de um crescimento burocrático patrimonialista. Tendência que foi claramente acentuada na última década. O Estado no Brasil de hoje é um criador de dificuldades de toda ordem, tanto para os indivíduos como para as empresas, um detrator da qualidade de vida e da produtividade. Toda crítica ao Estado tende a ser identificada com um liberalismo econômico radical e equivocado, segundo o qual o mercado tudo resolve, e assim é desqualificada. É um falso dilema. O Estado - assim como o mercado - é fundamental nas sociedades contemporâneas, mas é preciso ter um Estado inteligentemente organizado, eficiente, a serviço da sociedade, e não a serviço de seus próprios interesses, contra a população. 

Qual deve ser a postura em relação ao câmbio?

André Lara Resende: No mundo contemporâneo, no que se pode chamar de período pós Bretton-Woods, consolidado nas últimas décadas, as taxas de câmbio são flutuantes. Não completamente livres, mas uma flutuação administrada, para evitar a alta volatilidade de curto prazo, que é perturbadora da atividade econômica. A taxa de câmbio não é, portanto, uma variável de controle direto das autoridades monetárias, mas consequência da política econômica como um todo. A valorização do câmbio, nos últimos anos, percebida como excessiva, é decorrência da combinação perversa da baixa produtividade da economia, da poupança interna insuficiente - ou seja, alto consumo público e privado - com uma política monetária obrigatoriamente apertada para manter a inflação sob controle. É preciso rever toda a política econômica para que o câmbio encontre um equilíbrio menos punitivo para a produção nacional. Ao contrário do que pode parecer, não é possível corrigir problemas da política econômica com a manipulação do câmbio - é preciso corrigir o câmbio com a revisão da política econômica.

Há um represamento na inflação de preços administrados? Como deve ser feito um eventual ajuste para adequar esses preços à realidade de mercado?

André Lara Resende: Há efetivamente um represamento, como fica claro ao comparar a variação do índice de preços livres com a do índice de preços administrados. Em particular, o preço do petróleo e de seus derivados tem sido corrigido muito abaixo do necessário para manter a paridade com os preços externos corrigidos pela taxa de câmbio. Todo o processo, cujo objetivo é tentar manter a inflação dentro das metas, sem sobrecarregar a política monetária e subir demais os juros, apesar do excesso de gastos do governo, tem alto custo. Entre outros, o absurdo de subsidiar o consumo de combustíveis fósseis, derivados do petróleo. Acredito que o ajuste deva ser feito o mais rápido possível, desde que todas as demais incongruências da política econômica, sobretudo o gasto público excessivo, sejam corrigidos e percebidos como uma decisão de longo prazo. Assim, o impacto inflacionário da correção teria fôlego curto, dada percepção da correção de rota da política macro. Mais uma vez, é a distorção da política macro, sobretudo da política fiscal, que pressiona a inflação. Corrija-se a fonte do problema e as distorções periféricas se corrigem naturalmente, ou podem ser revistas sem grandes perturbações.

Há um certo mau humor dos investidores internacionais com o Brasil. O que o senhor acredita que está havendo? 

André Lara Resende: Durante alguns anos, houve uma lua de mel dos analistas e dos investidores internacionais com o Brasil. É compreensível. Nos governos Fernando Henrique Cardoso, a inflação crônica foi vencida e as contas públicas, nas suas várias instâncias, equilibradas. Eleito, Lula manteve inicialmente o curso da política macroeconômica e soube dar a um programa criado por Ruth Cardoso a dimensão merecida, o que incorporou um enorme contingente da população à classe média. O país fez efetivamente progresso, parecia estar pronto para o salto definitivo para o primeiro mundo. Com sua conhecida e tradicional obsessão por simplificar e caricaturar, analistas e investidores desconsideraram a vasta gama de gravíssimos problemas que ainda temos, fecharam os olhos ao primeiros sinais de que a política macroeconômica, sob a desculpa de minorar o impacto da grande crise financeira internacional de 2008, havia tomado outro rumo. Desde 2008, a política econômica brasileira é uma versão anacrônica e incompetente do velho desenvolvimentismo dos anos cinquenta do século passado, que teve seu período áureo durante o regime militar, até meados dos anos 70. De uns dois anos para cá, uma vez percebido o corporativismo estatista da política econômica, a incompetência para modernizar a infraestrutura e aumentar a produtividade da economia, os investidores, mais uma vez bem ao seu estilo volúvel e emotivo, passaram de um extremo ao outro. O Brasil agora lhes parece à beira do colapso econômico. Não acho que seja o caso. Ao menos ainda não.

O Senhor apoia algum candidato? 

André Lara Resende: Acredito que a alternância no poder é elemento fundamental da democracia. Uma década parece-me suficiente para que um governo diga a que veio. Mesmo quando o governo é bom, é preciso alternar. Muito tempo no poder desvirtua, leva à perda de foco, a confundir os interesses dos governantes e do partido com os interesses do país e da população. É importante ter novos ângulos, novos pontos de vista, sobre os problemas e os desafios do país. A alternância entre o PSDB e o PT, nas últimas décadas, foi positiva. O PT mostrou sua cara, suas qualidades e seus vícios, desmistificou-se. Foi importante. Acho que agora é hora de mudar. Tenho certeza de que Aécio Neves faria um excelente governo, como já demonstrou no governo de Minas. Na economia está muitíssimo bem assessorado e saberia como reverter o quadro delicado, decorrente dos erros da política econômica nos últimos anos. Não será fácil, sobretudo por conta do aparelhamento do Estado, promovido pelo governo nos últimos anos. Em nome da alternância e da mudança de ângulo, gostaria de ver um governo de Eduardo Campos e Marina Silva. Não apenas me identifico com uma nova visão do desenvolvimento, que dá mais importância à qualidade de vida do que exclusivamente ao crescimento material, como acho saudável que o pais transcenda um sistema bipolar, PT e PSDB, que tende à radicalização.

O senhor pode falar um pouco sobre a sua relação com a Marina Silva? 

André Lara Resende: Eu tive fiz alguns contatos com a Marina na eleição passada e conheço pessoas que conversam com ela. Converso muito com o Eduardo Giannetti. Recentemente, estive uma vez com a Marina e com o Eduardo Campos em um encontro da Rede. Eu não o conhecia, nem conhecia o pessoal dele. Fiquei bem impressionado. Mas não participo de campanha e não tenho nenhum engajamento.

Fonte: O Estado de S. Paulo

Pedro S.Malan: 20 anos do Real: significado e futuro

Passados 20 anos, deitou raízes entre nós a percepção de que é obrigação de qualquer governo preservar a estabilidade do poder de compra da moeda do País. E vale lembrar, mais uma vez, que para os envolvidos com o Plano Real e sua consolidação o controle da inflação nunca foi um objetivo único, um fim em si mesmo, uma estação a que se chegasse, e pronto.

Para nós, a agenda brasileira pós-1994 seria a própria agenda do desenvolvimento econômico e social do País. O que o Real fez foi permitir que o Brasil, antes drogado pela inflação desmedida, pudesse descortinar de forma menos obscura a natureza e a dimensão dos outros (inúmeros) desafios por enfrentar. Procurando tornar-se um país capaz de crescer de forma sustentável, com inflação sob controle, mais justiça social, finanças públicas em ordem e maior eficiência nos setores público e privado.

Como sabemos, 20 anos são pouco para a magnitude dessa empreitada. E também que a capacidade que têm governos (e sociedades) de identificar desafios, riscos e oportunidades depende da qualidade do seu entendimento sobre o seu passado. É difícil que alguém saiba para onde vai (ou pode ir, ou gostaria de ir) se não sabe de onde veio, como veio e como se encontra agora.

E o que temos agora? Temos hoje cerca de 20 anos de inflação relativamente civilizada desde o lançamento do Real. Não é coisa pouca para um país que foi recordista mundial de inflação acumulada nos 30 anos do início dos anos 1960 ao início dos 1990. Temos hoje mais de 20 anos desde que restabelecemos o nosso relacionamento com a comunidade financeira internacional, renegociando nossa dívida externa pública com credores privados e oficiais.

Temos hoje mais de 20 anos desde que demos um salto qualitativo e quantitativo no processo de abertura de nossa economia ao comércio internacional. Temos hoje bem mais de 20 anos desde que iniciamos o processo de privatização/concessão no Brasil, infelizmente interrompido durante longo tempo e só recentemente retomado. Temos mais de 20 anos de autonomia operacional do Banco Central na condução da política monetária - e existe hoje uma percepção mais ampla de quão fundamental para o País é preservar a credibilidade dessa instituição.

Passaram-se 17 anos desde que resolvemos problemas de liquidez e de solvência bancária, tanto no setor público quanto no setor privado - e desde então nunca mais tivemos problemas sérios em grandes bancos. Temos mais 15 anos, feitos em janeiro de 2014, de um regime de taxa de câmbio flutuante. Teremos, em junho agora, 15 anos do regime monetário de metas de inflação. Temos quase 14 anos desde que, em maio de 2000, foi aprovada a crucial Lei de Responsabilidade Fiscal.

Temos 13 anos decorridos desde o início dos processos de transferência direta de renda para as populações mais pobres do País por meio dos vários programas que foram criados a partir do ano de 2001- consolidados e ampliados pelo governo Lula a partir de outubro de 2003. Como é sabido, qualquer governo em qualquer parte do mundo constrói, sim, sobre avanços alcançados pelo país na vigência de administrações anteriores. O Brasil não é exceção a essa regra. Olhando os últimos 20 anos, há elementos de continuidade e de mudança, assim como há acertos e erros em todos os governos.

Mirando à frente, deveria ser possível, com um mínimo de boa-fé, honestidade intelectual e de recusa ao uso de rotulagens vazias, buscar construir as convergências possíveis (ou clarificar diferenças de forma honesta) pensando na próxima geração. A seguir, apenas dois exemplos de questões sobre as quais um debate sério me parece inadiável, para um país que pretende, e pode, mostrar que é capaz de escapar da chamada "armadilha da renda média", que aqui ainda é cerca de um quarto da renda média atual dos principais países desenvolvidos.

O Brasil tem hoje a quarta maior população urbana do mundo. E esta aumentou em mais de 150 milhões de pessoas nos últimos 60 anos. Nossas carências sociais e de infraestrutura urbana são enormes e se expressam sob a forma de demandas por mais e melhor saúde, educação, emprego e renda e por mais e melhor infraestrutura de transporte, energia e saneamento. Que são tidas, todas, como altamente "intensivas em Estado". Que para tal precisaria tributar, endividar-se e gastar ou transferir os recursos assim obtidos - sempre escassos em relação às demandas e expectativas. Nosso futuro depende de mais clareza nessa discussão - e sobre prioridades no uso de recursos escassos. Há prioridades que estimulam maior crescimento, outras que o inibem. A questão não é sobre a necessidade de Estado, mas sobre a forma como governos específicos atuam.

O outro desafio vem da extraordinária velocidade de transcrição demográfica no Brasil. A população brasileira, que crescia a 3,1% ao ano na década de 1950 e a 2,4% no início dos anos 80, está crescendo a 0,7% ao ano nesta década. Na qual a faixa etária até 29 anos está diminuindo. A faixa até 39 anos diminuirá na próxima década, quando a população estará crescendo a 0,44% ao ano. Como escreveu Fabio Giambiagi, esse é "um desafio cujas dimensões ainda não foram percebidas pela opinião publica - e, o que é mais grave, nem pelo governo".

Os efeitos dessa transição já se fazem sentir hoje na oferta de mão de obra e na população ocupada. A partir de agora, o crescimento da população ativa "garante" pouco mais que um ponto porcentual de crescimento do produto interno bruto (PIB). Como mostram vários estudos, crescer muito além disso (1.2% a 1.4%), só com aumentos de produtividade. Que dependem de acumulação de capital físico e humano por trabalhador, de inovações técnicas e de mudanças nas áreas previdenciária, trabalhista e tributária.

Agenda para os próximos 20 anos. Com o Real.

*Economista, foi ministro da Fazenda no governo Fernando Henrique Cardoso

Fonte: O Estado de S. Paulo