domingo, 16 de novembro de 2008

Cenários para 2010


Nas Entrelinhas: Luiz Carlos Azedo
DEU NO CORREIO BRAZILIENSE


Como os grandes bancos na crise, os grandes partidos não querem apenas fazer alianças, querem engolir os pequenos. Com o poder central em disputa, o resto é conseqüência

A crise mundial é uma “externalidade negativa” na linguagem dos economistas. Ou seja, uma variável fora de controle, para a qual é necessário adotar medidas capazes de neutralizar seus efeitos, já que é impossível evitá-los. A marolinha deixou de ser ameaça, virou agressão ao consumo, ao crédito, à produção e ao emprego no Brasil. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva pôs as barbas de molho. A equipe econômica já não se entende sobre a taxa de juros. Em outras circunstâncias, a política econômica estaria “blindada” e interditada ao debate político. Mas são os políticos que comandam, neste final de semana, na reunião do G-20 em Washington, a operação de salvamento da economia mundial.

O governo

O presidente Lula edita uma medida provisória atrás da outra para neutralizar os efeitos da crise. Criou linhas de créditos para comprar carteiras de bancos, com imunidade judicial para os operadores dessas aquisições. Outra medida provisória permite ao Banco do Brasil e à Caixa Econômica salvar instituições financeiras, montadoras e construtoras. O Banco Central opera diariamente no mercado financeiro e na Bolsa para controlar a cotação do dólar e manter os investimentos estrangeiros. O crédito, porém, não chega aos médios e pequenos empresários na velocidade necessária; os consumidores estão retraídos, mais preocupados com a liquidação das dívidas; as empresas puxam o freio de mão dos investimentos e contratações.

Nesse ambiente, os políticos aliados do governo Lula e a oposição fazem planos para a sucessão presidencial em 2010. Há três cenários, todos contingenciados pela tal “externalidade negativa”.

O mais otimista acredita num desfecho positivo das medidas adotadas pelos governos europeus, da China e de outros países asiáticos, mas, sobretudo, por ações do presidente eleito dos Estados Unidos, Barack Obama, após a posse. Nesse cenário, o presidente Lula mataria a bola no peito e faria um gol de placa: a crise seria debelada no Brasil. A ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Roussef, à frente do nosso “New Deal” (o vitorioso programa de investimentos públicos que tirou os Estados Unidos da Grande Depressão na década de 30), no caso o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), chegaria a 2010 como candidata favorita. Esse é o Plano A do governo Lula.

O cenário mais pessimista é imaginado pela turma do “quanto pior melhor”. A crise mundial seria uma nova depressão econômica, com os governos dos países desenvolvidos tentando transferir os prejuízos para a periferia, como sempre aconteceu. A crise chegaria ao Brasil com toda força: deterioração dos fluxos cambiais, com um rombo na conta corrente de comércio exterior devido à redução dos preços e das vendas de commodities; e déficit fiscal galopante, em razão da queda de arrecadação e despesas ascendentes com pessoal sugando os recursos para os investimentos do PAC. Nesse ambiente, Lula terminaria o governo como “pato manco”. Os governos de São Paulo e Minas também seriam engolidos pela crise. Estaria aberto o espaço para um candidato outsider descolado do establishment.

O terceiro cenário, diria o falecido João Saldanha, “é mais ou menos”: recessão controlada nos Estados Unidos, Europa e Ásia, com certo nível de atividade econômica nos países emergentes, alavancados pelo crescimento moderado da China. Nesse contexto, a sucessão de 2010 seria uma disputa aberta, na qual a situação da economia neutralizaria o peso da máquina pública e o prestígio pessoal de Lula. Uma disputa onde os partidos, seus políticos e a política propriamente dita teriam mais autonomia em relação ao governo federal.

Como o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou a cassação dos mandatos dos deputados que trocaram de partido, precipitou-se o reagrupamento de forças políticas para sucessão de 2010.

Fala-se muito em reforma política, mas os grandes partidos estão interessados em duas coisas apenas: o fim das coligações nas eleições proporcionais e novo prazo para a troca de partidos.

Como os grandes bancos na crise, os grandes partidos não querem apenas fazer alianças, querem engolir os pequenos. Com o poder central em disputa, o resto é conseqüência.

Um deputado para ser eleito, com raríssimas exceções, precisa dos votos de legenda para atingir o quociente eleitoral. Caso o Congresso aprove o fim das coligações, muitos ficarão em risco eleitoral. Isso cria um dilema: ou o parlamentar fica no partido, e corre risco de não ser eleito; ou migra para outro partido, onde pode se eleger. Por isso, há dois movimentos: um é dos políticos em risco eleitoral que buscam uma solução individual; o outro, dos partidos ameaçados de esvaziamento, que tentarão encontrar uma saída coletiva por meio de fusões e incorporações.

Sob o rigor da lei de Gérson


Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Com toda força adquirida depois de conseguir uma vitória suada para a Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, a capital de maior visibilidade do País, o governador Sérgio Cabral continua sendo voto vencido dentro do próprio partido.

Tenta, já sabendo que não terá a menor chance de sucesso, que o PMDB deixe de lado a “falsa malandragem” da dubiedade como arma de pressão eterna e assuma uma posição de fidelidade explícita e permanente ao governo Luiz Inácio da Silva.

Em todos os aspectos: do respeito ao acordo pelo comando das presidências do Congresso, deixando o Senado para Tião Viana do PT, até a permanência do partido na aliança governista na eleição de 2010.

Mesmo se for para perder?

“Mesmo assim.”


A menos, ressalva, que o PMDB tenha algum “político tarimbado” para se apresentar à disputa marcando uma posição de protagonista. Como, na visão dele, esse personagem não existe no horizonte, não há razão para suspense: “É ficar com o PT”.

A repetição do jogo da divisão pragmática entre as canoas mais bem posicionadas pode manter o PMDB no poder, ganhe quem ganhar. Mas, na opinião do governador, “só vai aprofundar o desgaste do partido”.

Para ele, passou da hora de o PMDB “eliminar esse tipo de postura”. Qual seja, a de levar vantagem em tudo, certo?

Na última reunião em Brasília para tratar das eleições na Câmara e no Senado, Cabral diz que defendeu uma definição nítida e imutável. Em vão.

“Temos as maiores bancadas, o direito de reivindicar o comando das duas Casas, mas, por uma questão de confiança e espírito de aliança, deveríamos apoiar o PT no Senado, ficar com a Câmara e, assim, consolidar a parceria.”

Não haveria por trás dessa enfática defesa da fidelidade a mesma visão pragmática que orientou o discurso do candidato a prefeito Eduardo Paes, a quem Cabral levou a se reconciliar com Lula em nome do trânsito livre de verbas de Brasília para o Rio?

De fato, mas até o pragmatismo requer regras de confiabilidade e reciprocidade. O tratamento que Lula dá ao PMDB como um todo justificaria, na concepção de Sérgio Cabral, o abandono da ambigüidade.

“Nunca fomos tratados com tanta respeitabilidade, com entrada franqueada pela porta da frente; agora seria a hora de retribuir na mesma moeda.”

Inútil especular sobre as chances de acontecer. Sérgio Cabral faz a crítica, mas não atropela os interesses do partido.

Ponta cabeça

Se o ministro da Saúde for abatido pela permissividade do presidente Lula frente a um cada vez mais atrevido PMDB, José Gomes Temporão deixará como legado o melhor serviço prestado nos últimos tempos à transparência das relações entre o Poder Executivo e sua base de apoio no Legislativo.

A reação do partido - dono da “cota” da Saúde - ao desabafo de Temporão sobre a corrupção e a ineficiência existentes na Fundação Nacional de Saúde não deixa dúvida sobre a noção de governabilidade reinante na Esplanada.

“Reconhecemos em Temporão um técnico muito conceituado, mas ministro é também função de liderança política. É preciso saber ouvir, interagir, respeitar e ter a sensibilidade da boa convivência”, diz o líder da bancada na Câmara, deputado Henrique Alves, traduzindo a seu modo as reclamações de que o ministro não dá a devida atenção aos parlamentares nem à liberação dos recursos das emendas ao Orçamento.

Quer dizer, o ministro da Saúde faz tudo direito. Cuida prioritariamente das tarefas afetas à pasta e, quando se vê confrontado com lobbies contra a transferência da política de saúde indígena para a jurisdição de seu gabinete, põe o dedo na ferida exposta da corrupção na Funasa, objeto de reiteradas e públicas denúncias.

Ainda assim, ou por isso mesmo, o PMDB pede sua saída; e o faz pelo motivo errado: a prioridade dada pelo ministro aos assuntos atinentes à saúde do público em detrimento das conveniências do partido.

Este mesmo PMDB, vale lembrar, reivindica a pasta da Justiça sob a qual está a Polícia Federal.

Olha cá

O senador José Sarney registrou seus primeiros desconfortos em relação ao presidente eleito dos Estados Unidos, Barack Obama, sexta-feira, em seu artigo semanal na Folha de S. Paulo.

Sarney não gostou do excesso de informalidade no discurso da vitória, achou de mau gosto as referências ao cachorrinho das filhas, censurou a retórica “com cheiro de demagogia, comum aos populistas sul-americanos”.

De fato, nada comparado ao discurso de Lula ao ser eleito em 2002: “Quando a gente está apaixonado, que a gente quer casar, a gente senta com a nossa namorada e fica alimentando os nossos sonhos, discutindo o que a gente pode fazer. E a gente casa. E nem sempre o que a gente quis fazer a gente consegue fazer com a rapidez que a gente imaginava fazer”.

Mudança de modelo


Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


NOVA YORK. A possibilidade de o presidente eleito Barack Obama vir a criar um ministério especial para cuidar da indústria automobilística pode indicar que o socorro financeiro do setor poderá ficar subordinado a políticas ambientais e à implantação de modelos de uso híbrido de combustíveis. Fugindo à sua teoria de que os Estados Unidos só podem ter um presidente de cada vez, Obama pressionou publicamente o Presidente Bush a aprovar um pacote de salvamento para a indústria, especialmente a GM, Ford e Chrysler, as três grandes de Detroit que estão mais uma vez em dificuldades financeiras.

Como Bush, de saída da Casa Branca não quer tomar a iniciativa, a maioria democrata no Congresso já decidiu, a partir de amanhã, aprovar uma verba de US$50 bilhões na sessão apelidada de "pato manco", referência à situação política precária do presidente que termina o mandato tendo tido seu candidato derrotado na eleição.

Essa fidelidade a uma indústria específica tem sua explicação tanto na cultura americana quanto na base eleitoral democrata. Michigan e Ohio votaram no democrata, sendo que Ohio deixou de ser um estado republicano para apoiar Obama.

Nos subúrbios de Detroit, a classe média de operários brancos da indústria automobilística, que havia se passado para o lado dos republicanos desde 1980 com Ronald Reagan, voltou para o seio dos democratas, que sempre venceram no Estado.

Mas, para ser coerente com sua pregação, o futuro presidente Barack Obama terá que começar a forçar uma mudança de matriz energética que transforme os Estados Unidos de dependente do petróleo importado em consumidor de energias alternativas como os biocombustíveis.

Está havendo uma reação muito grande da opinião pública contra uma ajuda às montadoras aqui nos Estados Unidos sem que se mude o perfil da indústria automobilística, que teria que se adaptar às novas condições do mercado internacional, que será fortemente influenciado pela crise econômica que se desenha prolongada.

O Brasil, como pioneiro na tecnologia de fabricação do etanol a partir da cana-de-açúcar, e de outros biocombustíveis, está se preparando de várias maneiras para o que pode vir a ser uma mudança fundamental no mercado internacional.

A partir de amanhã, será realizada em São Paulo a "Conferência Internacional sobre Biocombustíveis: os biocombustíveis como vetor do desenvolvimento sustentável", discutindo temas como segurança energética, produção e uso sustentáveis, agricultura, processamento industrial, além de questões ligadas a especificações e padrões técnicos, comércio internacional, mudança do clima.

O anúncio de que no campeonato de Fórmula Indy do próximo ano, uma competição tipicamente americana, será utilizado etanol brasileiro faz parte de um esforço de marketing para contrabalançar o poder dos produtores de etanol americanos, que contam com um forte subsídio governamental.

Em recente palestra na Universidade Columbia, o brasileiro Sérgio Trindade, especialista em combustíveis alternativos, ressaltou a necessidade de os biocombustíveis virarem commodities para competir no mercado internacional.

Trindade destacou que os países importadores como Estados Unidos e União Européia podem combinar a produção local com a importação, sendo necessário para que esse mercado internacional funcione um programa de certificação que seja reconhecido e adotado por todos.

O mercado ainda é incerto, atuando de maneira precária em Chicago, Nova York e São Paulo, com pouca liquidez e poucos contratos. As barreiras tarifárias e sanitárias são questões ainda não resolvidas, além das condições de trabalho nas lavouras. A mecanização da lavoura de cana-de-açúcar, por exemplo, está reduzindo as queimadas e melhorando os salários no Brasil.

O Programa Brasileiro de Certificação de Biocombustíveis, que está sendo desenvolvido pelo Inmetro, vai dar atenção especial aos aspectos sociais e ambientais da produção dos biocombustíveis.

A parceria com o instituto nacional de metrologia dos EUA, prevista no memorando de entendimentos assinado entre os governos dos dois países, fará com que essas normas venham a ser incorporadas aos aspectos técnicos do produto, para que tenha uma uniformidade capaz de transformá-lo em commodity.

Os primeiros padrões de medição de alta qualidade para bioetanol e biodiesel já foram produzidos, e já existem cerca de 10.000 ampolas de materiais de referência certificados que serão em breve comercializados internacionalmente.

Paralelamente, estão sendo desenvolvidos novos métodos de análise para determinação da composição de biocombustíveis, bem como sua origem geográfica.

Foi criada também uma força-tarefa para harmonização das especificações de biocombustíveis, base para normas internacionais que estão sendo criadas.

O Inmetro está participando do Projeto Biorema, da Comunidade Européia, que objetiva realizar uma ampla capacitação dos laboratórios nacionais europeus para análises de biocombustíveis, através de um grande exercício de intercomparações de medições de padrões de alta confiabilidade, definidos pelo Inmetro e pelo NIST americano.

Também está sendo iniciada uma cooperação com o instituto metrológico alemão (PTB) para produção de padrões e técnicas analíticas especiais para biocombustíveis.

Todas essas medidas, no entanto, só terão consequência prática se o mercado internacional realmente for aberto, e para tanto os subsídios aos agricultores teriam que ser revistos tanto pelos Estados Unidos quanto pela Comunidade Européia.

A crise econômica internacional, no entanto, não sugere um momento propício para a abertura do mercado internacional.

Pacificação e projeto político


Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)

Por despeito pessoal, tática política ou ambos, algumas lideranças latino-americanas começaram a colocar-se na contramão da opinião pública mundial e iniciaram um sutilíssimo movimento para minimizar o impacto da vitória de Barack Obama. Um dos seus argumentos: afinal a vitória de um negro nos EUA aconteceu quase oito anos depois da eleição de um metalúrgico nordestino para a presidência do Brasil e quase três anos depois da escolha de um índio cocalero para presidir a Bolívia.

O clube não chega a constituir-se formalmente como anti-obamista, por ora está interessado em arrefecer a admiração pelo futuro presidente dos EUA que afinal continuam encarnando o papel de País-Satanás. O grupo esqueceu de incluir no elenco de minimizações a eleição do eletricista Lech Walesa como presidente da Polônia há 18 anos e, há 14, do advogado Nelson Mandela, militante do movimento anti-apartheid, na África do Sul.

São vitórias igualmente extraordinárias, sem exceção, sobretudo porque resultaram de eleições democráticas. Representam o inexorável movimento republicano-democrático que não-obstante as sangrentas interrupções e periódicos retrocessos, vem sendo construído há quase 300 anos como o mais justo modelo para a escolha de governantes.

O que diferencia Barack Hussein Obama dos demais líderes que ascenderam da marginalidade para o poder é o conteúdo da sua postulação, seu compromisso em superar os ressentimentos que tornaram tão expressiva sua vitória. O primeiro negro a ser escolhido para presidir os EUA projetou-se através de uma plataforma claramente pós-racial e através da firme disposição de enterrar a odiosa diferença étnica entre os seus concidadãos.

Seus primeiros movimentos políticos como presidente-eleito foram no sentido de apressar a cicatrização das feridas eleitorais. O confronto entre os liberais e conservadores (para usar a designação anglo-saxônica) e agravado ultimamente pela exacerbação dos fundamentalismos religiosos será difícil de superar, mas alguns dos gestos de Obama – inclusive o anunciado encontro com o ex-adversário John McCain – sinalizam para um aggiornamento (atualização, no sentido de distensão) nas relações entre republicanos e democratas.

Evo Morales não se esforçou, ao contrário, manteve a divisão étnica-social herdada dos tempos coloniais e apenas mudou a sua direção: trocou a secular e impiedosa hegemonia da minoria branca pelo hegemonismo demográfico dos nativos e ainda acrescentou condimentos político-administrativos que levaram a Bolívia à beira de uma secessão efetiva.

Muito mais hábil, o presidente Lula candidatou-se e foi eleito com base num compromisso de continuidade no âmbito econômico. Soube mantê-lo e servir-se dele. Só não conseguiu preservar o clima de civilidade que dominou o processo de transição (um dos mais civilizados da nossa história). O "aparelhamento" do governo pelo principal partido da situação criou uma penosa discriminação dentro da sociedade brasileira onde o princípio "aos amigos tudo" cria discriminações inconcebíveis numa sociedade teoricamente isonômica.

Mas o presidente Lula falhou de forma ostensiva como chefe de um Estado secular e que, apesar disso, convive com uma perigosa disputa entre evangélicos e católicos, verdadeira "guerra santa" pelo controle dos corações e mentes dos brasileiros no âmbito da mídia eletrônica.

Para atender aos partidos aliados que militam em diferentes denominações evangélicas, o governo é condescendente na distribuição de concessões de rádio-difusão e mantém a aberrante figura do congressista-concessionário.

E para aliviar as suas culpas, o governo anunciou em Roma nesta quinta feira, uma autêntica "Concordata" com a Santa Sé que além de ter sido preparada na clandestinidade, sem qualquer aviso ou debate, confronta o espírito da Carta Magna e os fundamentos de um Estado secular.

Esquecido do exemplo pacificador do seu colega Barack Obama, o teólogo Lula da Silva deveria lembrar-se que uma nação na qual as contendas religiosas são apenas disfarçadas jamais terá ânimo para eliminar as diferenças. Jamais caminhará unida.

» Alberto Dines é jornalista

A infame tradição


José Arthur Giannotti

DEU NA FOLHA DE S. PAULO / MAIS!

Vícios políticos ainda permeiam direita e esquerda no Brasil e põem em risco o processo democrático


As fraquezas do sistema político brasileiro não estão nos procedimentos eleitorais. Estes são menos complicados do que os norte-americanos, como provam as últimas eleições lá e aqui. Residem no modo pelo qual as regras -sejam elas meros acordos ou leis promulgadas- são cumpridas.

O vício é nacional. Sabemos que existem leis que não pegam. O combate ao alcoolismo é o exemplo mais recente. Foi proibida a venda de álcool na beira das estradas, a última "lei seca" impôs limite praticamente zero ao consumo de bebida pelos motoristas.

Ambas foram escandalosamente anunciadas, cumpridas a ferro e fogo por algumas semanas e, depois, como o Estado, felizmente, não tem condições de vigiar, controlar e punir os pormenores do comportamento dos cidadãos, as coisas, infelizmente, resvalam para a situação anterior.

A lei espetaculosa não logra os resultados desejados, mas cria ambiente favorável ao dedo-duro, ao gavião puritano que acredita ser possível mudar a sociedade mediante golpes de legislação e de terror. Essa tradição brasileira cada vez mais permeia o jogo político brasileiro. Parece-me que uma das causas foi o empolamento do centro, particularmente quando passou a abrigar o PT e o lulismo.

Estou convencido de que isso era inevitável, dadas as novas circunstâncias políticas internacionais e as novas formas assumidas pelo capitalismo. De um lado, o inevitável multilateralismo criado depois do fim de Guerra Fria; de outro, a reestruturação do capitalismo, que, graças a um tratamento inovador e surpreendente da informação, leva aos limites sua velha tendência à globalização.

Desaparecem do horizonte o ideal de uma economia sem mercado e a ilusão da política regida racionalmente pelo comitê central.

Se a esquerda consiste em criar alternativas reais às misérias promovidas pelo capital, agora sua tarefa se consolida na luta pelo aprofundamento da democracia, na demanda de instituições transparentes, que sejam capazes de controlar as loucuras do mercado, as lutas de classes desvairadas, o jogo sujo na política.

Democracia interna

A atual crise financeira e econômica comprova que os Estados nacionais somente se tornam atores eficazes em suas práticas anticrise se agirem coordenadamente, o que levanta desde logo a questão política do controle popular das instituições internacionais encarregadas de sanar os desregramentos dos mercados. Ora, esse controle implica aprofundar ainda mais a democracia interna. Em primeiro lugar, criar um espaço em que os interesses e as ideologias possam se configurar publicamente, de sorte que a luta política se exerça como jogo de opções particulares diante de alternativas claramente desenhadas. Sob esse aspecto, toda política que dilua essas particularizações se torna extremamente reacionária.

Para que haja maioria consistente, também é preciso minoria consistente, que as duas partes não se constituam ao sabor de acordos do momento ou de interesses articulados para saquear os fundos públicos; muito menos para satisfazer a vaidade de condottiere.

Esse vício é comum a todos os partidos atuais. Mas, estando no poder nacional, o governo articulado pelo presidente Lula é o maior responsável por essa anomia da política brasileira. O exercício do poder possui dimensão normativa insubstituível, exemplifica parâmetros do que pode ser dito e do que pode ser feito.

Como essa normatividade pode ser mantida quando toda alteridade é absorvida pelas alianças mais díspares? Como manter paradigmas se o presidente, com sua fabulosa capacidade de formular o desejo imediato de seu auditório do momento, se permite ser irresponsável quando se lhe pede uma análise correta de uma situação difícil? "Qual é a profundidade da crise? Perguntem ao Bush!"

Como se desenha uma crítica de esquerda a essa anomia? Não basta possuir o voto mais popular; Mussolini gozava desse privilégio. Deve-se, antes de tudo, defender e aprofundar a democracia.

É o que a direita proclamava quando se acreditava no centralismo democrático, mas sempre vale menos o que se diz e mais o que se faz, e não adianta, ao sair em defesa da democracia, procurar ajuda nos quartéis. Nem bem terminaram as eleições municipais deste ano e já os partidos e os grupos políticos se embolam pela conquista da Presidência.

Embora os resultados dessas eleições tenham sido melhores do que o esperado, pois não se configurou a onda vermelha unificadora do nada, o jogo político não respeitou as regras mínimas do respeito pelo adversário.

Em São Paulo o desrespeito foi desvairado, muito mais surpreendente porque veio sobretudo da coligação liderada pelo PT. Onde está a renovação dos costumes políticos que esse partido prometeu, no ato de sua fundação, naquela memorável reunião no colégio Sion [em SP, em 1980], onde muitos de nós lá estávamos para refundar a política brasileira?

Oposição responsável

Também a oposição não deixa de ter culpa no cartório. A tarefa de se configurar como alternativa ao lulismo cabe ao PSDB. É consenso que José Serra foi o maior beneficiário do último processo eleitoral, mas é preciso que ele não permita a seus aliados levarem de roldão seus adversários -circunstanciais ou não.

Do mesmo modo, já que Aécio Neves, apoiado por seu excelente governo de Minas Gerais, legitimamente aspira à Presidência, que ele tenha a cautela de refrear seus aliados, impedindo-os de vir a público fazer denúncias irresponsáveis.

Se ambas as partes se lançarem num jogo descomprometido com procedimentos democráticos, o desastre será enorme. Espero de nossas lideranças críticas que sejam capazes de articular um movimento de oposição combatendo essa anomia dos costumes políticos brasileiros, essa irresponsabilidade diante das normas que ameaça o nosso futuro democrático. Antes de tudo é preciso saber que país queremos.

Dadas, porém, a abrangência da questão e a profundidade da crise nacional e internacional, espreita o perigo de uma solução totalizante e totalitária, liderada por gaviões que busquem o apoio popular sem os meandros das instituições democráticas. Há lugar para novos conselheiros. Desconfio de projetos e programas abrangentes, que encobrem as vicissitudes da implementação; mais ainda de alianças descaracterizadas.

Cabe organizar um governo que se segure política e praticamente, capaz de formular problemas e implementar soluções, sempre tendo no horizonte, entretanto, o respeito às leis constituídas e o compromisso com a prestação pública de seus atos.

Desse ponto de vista, é inteiramente falso o dilema de uma aliança do centro com a esquerda ou com a direita. Votos dos grotões teve o antigo PFL e agora tem o PT. Se as forças políticas reais estão todas empoladas no centro, este só pode ser movido democraticamente se contar com o apoio de democratas.

É melhor evitar tanto o gavião direitista como o periquito predador representante do comissariado central. Tenho medo dos gaviões, mas receio ainda mais o periquito predador -na política ou na imprensa-, que come o milho e deixa o papagaio ficar com a fama.

JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito da USP e coordenador da área de filosofia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais! .

A crise econômica e o G-20


Rubens Ricupero*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO/ALIÁS


É ilusão esperar que os ricos transfiram o poder regulatório a órgãos fora de seu controle

A crise econômica é como o incêndio que destruiu o Teatro Cultura Artística: o fogo deixou a casa de máquinas e começa a propagar-se pelo palco e o auditório. Não sabemos se vai sobrar o painel da fachada, nem quando se apagarão as chamas. Só depois disso é que se poderá principiar a reconstruir o prédio à prova de incêndio.

Neste momento a prioridade absoluta é impedir que a crise se instale como depressão profunda e prolongada. Em setembro e outubro desapareceram nos EUA 524 mil empregos e mais 844 mil foram reduzidos a tempo parcial involuntário. A taxa de desemprego (6,5%) cresce 0,3% ao mês e logo ultrapassará 7%. A falência dos gigantes automobilísticos, a GM ou a Ford, afetaria 2,5 milhões de empregos diretos e 1,4 milhão de indiretos. Suspenderiam o pagamento de dívidas 7,3 milhões de famílias entre 2008 e 2010 e 4,3 milhões se veriam ameaçadas de perder a casa.

É a vida de milhões de pessoas que está em jogo, não as perdas de papel dos financistas culpados pelo colapso. Apenas agora, pouco antes da eleição e posse do presidente, a crise alcançou a economia real da produção e do emprego. A situação de Obama é a mesma de Franklin Roosevelt em 1932: precisa ter pronto pacote de impacto para evitar a depressão e apressar a recuperação da economia. Se não der certo, será o presidente fracassado de um só mandato.

Fala-se em estímulo fiscal de 2% a 3% do PIB, entre US$ 300 bilhões e US$ 450 bilhões, parte para encorajar o consumo, parte para investir numa infra-estrutura envelhecida. Será preciso salvar as vítimas do desastre das hipotecas. Ademais, socorrer a indústria de automóvel, as linhas aéreas, reforçar a rede de segurança social: prolongar o seguro-desemprego para além de 26 semanas, aumentar os cupons de alimentação, recuperar os devastados fundos de aposentadoria. Levando em conta os US$ 700 bilhões aprovados, o gasto total pode chegar a 10% do PIB (US$ 1,5 trilhão). Há espaço para o aumento do déficit, pois o país tem dívida pública ainda três vezes menor que a do Japão.

É inevitável a aproximação entre o “Big Bang” de Obama e o New Deal de Roosevelt devido à coincidência de uma crise avassaladora com a eleição e posse. Até a enervante espera sem poder fazer nada é semelhante. Durante os cinco meses em que tudo parecia ruir, Roosevelt rejeitou o “abraço de afogado” do presidente Herbert Hoover, recusando-se a endossar as medidas do governo moribundo. Emendou-se a Constituição para cortar a espera pela metade, mas o problema permanece. O que fará Obama?

Até que ponto se comprometerá com o mais impopular governo da história? O secretário do Tesouro é responsabilizado pelo erro fatídico de deixar falir o Lehman Brothers. Depois de aprovar a duras penas o pacote de aquisição de ativos tóxicos, acaba de mudar de idéia, resolvendo usar o dinheiro para comprar ações e capitalizar os bancos. Não é com esse ziguezague que vai conseguir reconquistar a confiança da população.

É por isso que idéias ambiciosas como a de Bretton Woods II, de uma nova arquitetura, ordem financeira ou governança global, caras aos europeus e aos emergentes, terão de esperar pelo novo governo dos EUA. O que essas propostas têm em comum é visarem à mudança radical na distribuição do poder decisório em organismos como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.

Os americanos, principais beneficiários e guardiães da ordem que criaram no apogeu de sua influência, sabem que, em hora de redução do poder relativo dos EUA, uma redistribuição para valer teria de ser feita às expensas deles. Não há registro na história de potência hegemônica que tenha aceito tal coisa.

Os europeus falam bonito, mas suas cotas de voto no sistema de Bretton Woods - acima de 30% comparadas a menos de 20% dos EUA - não se justificam no caso da Alemanha, França, Itália, Holanda e Bélgica, países de moeda única e com um só banco central. Nenhum deles, contudo, cogita de abrir mão de parcela da cota para permitir, digamos, o aumento da representação da África. O poder continua a realidade determinante da ordem política e econômica mundial. Não será uma crise financeira que vai mudar essa realidade.

O discurso do presidente Bush em Nova York em 13 de novembro indica a linha que os EUA seguirão na reunião do G-20 em Washington: não há nada de errado com os mercados do ponto de vista sistêmico. Alguns ajustes e aperfeiçoamentos técnicos bastarão para que tudo volte ao normal. Daí a Bretton Woods II, a distância se mede por anos-luz.

O mais provável é que os presidentes do G-20 solicitem aos ministros que preparem as melhorias técnicas, criando talvez um grupo de trabalho para acompanhar a execução. Emergentes como a China, com excesso de poupança e saldos em conta corrente, serão instados a estimular a demanda global. Não é o caso do Brasil, cuja precária situação está longe da gabolice de autoridades que só se distinguem pela gastança improdutiva.

A fim de avançar na regulamentação, terá de se ampliar o Fórum de Estabilização Financeira mediante a inclusão de alguns países emergentes, sem alimentar grandes ilusões. Como a de que os governos das maiores praças financeiras do mundo, Nova York e Londres, aceitem transferir o poder regulatório a qualquer órgão internacional não controlado por eles. Difícil também será os mercados admitirem eliminar as brechas de intermediação não-bancária (hedge funds, entre outros) e a regulamentação rigorosa das transações responsáveis pelo derretimento atual: as securitizações e os derivativos. Sem esquecer a abertura e transparência dos mercados, limitando a possibilidade das operações over-the-counter (acima do balcão).

De qualquer forma, essa é agenda que só vai avançar depois de apagado o incêndio. Antes, a prioridade para os governos, a começar pelo chefiado por Obama, é coordenar um vigoroso esforço para abreviar a crise, permitindo o início da recuperação em fins de 2009, devolvendo a confiança aos consumidores e a esperança aos que precisam de emprego.

*Rubens Ricupero, diplomata e ex-ministro da Fazenda, foi secretário-geral da Unctad - Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento. É diretor da Faculdade de Economia da Faap

A escola do avesso


José de Souza Martins*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Depredação de estabelecimento estadual de ensino em São Paulo expõe crise de autoridades

Na polêmica sobre o sentido das palavras que entreteve com o ovo Humpty Dumpty, Alice questionou-o em relação à tese de que podemos dar às palavras o sentido que bem entendermos. Para ela a questão é que as palavras têm o sentido que têm. Humpty Dumpty não se deu por achado e tachou: “A questão é quem deve ser o mestre”, isto é, quem deve mandar e decidir o que as palavras significam. Alice do outro Lado do Espelho, de Lewis Carroll, é a melhor fabulação sobre a sociedade do absurdo e as grandes inversões de sentido da sociedade contemporânea. Uma sociedade que atravessou o espelho da realidade e tudo passa a existir ao contrário e a significar o oposto do que deveria significar. Tanto que, quanto mais se caminha, mais longe se fica do lugar ao qual se quer chegar. Essa obra de Carroll veio-me à cabeça quando li o noticiário sobre a depredação da Escola Estadual Amadeu Amaral, no bairro do Belenzinho, em São Paulo.

Na Escola Amadeu Amaral uma parte dos alunos falou a linguagem da desordem, outra parte falou a da ordem, os docentes e a direção perderam-se na linguagem do medo e da omissão, a polícia extraviou-se na estranha repressão de motim no que motim não era, falta de recursos pedagógicos para interromper a bagunça. Várias linguagens desencontradas entre si, cada qual incompreensível no código da outra. Nessa anormal sociedade dos avessos, faltou ali levar em conta a tese de Humpty Dumpty: cadê o mestre?

Os alunos dessa escola não sabem quem ele é. Um pequeno grupo de alunos se intitula Primeiro Comando da Escola, o que já indica o modelo colhido na pedagogia da criminalidade, amplamente difundida pela cultura do espetáculo. Em reiterados atos de violência faltou autoridade ao corpo docente intimidado. As chamadas devidas providências não foram tomadas, o medo dos docentes indultou os alunos e a indisciplina cresceu. Em diferentes pesquisas, centenas de escolas do Estado têm relatado episódios de violência, que incluem violência verbal, vandalismo, assalto à mão armada, violência sexual e até assassinatos. Não só alunos ameaçam e atacam professores, mas há também casos de pais agredindo professores. Já não se trata de espontâneos episódios de violência, mas de uma cultura da violência, com padrões e regras. Uma violência padronizada mobiliza nas respostas ocorrências fora da compreensão dos envolvidos, cada vez mais freqüentes, o que é fatal numa instituição com marcas evidentes de obsolescência.

O histórico esvaziamento da autoridade do professor e a demissão da família como co-responsável pela educação contribui para a perda de legitimidade da escola como instituição auxiliar na socialização das novas gerações. Além disso, a difusão de uma cultura de direitos individuais acima das obrigações sociais contribui para confundir os jovens, e mesmo seus pais, em relação à civilidade própria do direito como contrapartida do dever.

O magistério não tem o menor sentido senão baseado numa relação de autoridade que une o destino de quem sabe e ensina ao destino de quem não sabe e aprende. A relação professor-aluno não é nem pode ser uma relação de dominação, mas é uma relação desigual. Se os valores em que se funda essa criativa desigualdade pedagógica não são reconhecidos por uma das partes, o sistema inteiro desaba. O magistério só frutifica se alunos e professores, funcionários e famílias de alunos formarem o que Ecléa Bosi, em relação a outro tema, chamou de comunidade de destino. Quase tudo que se faz em relação à educação hoje em dia, sobretudo na escola, está no geral longe disso. A escola se burocratizou, os salários afetaram a própria auto-estima dos professores, uma mentalidade proletária ocupou na vida do professor o lugar da idéia do ensino como missão civilizadora. Alunos e professores deixaram de ser sujeitos e se tornaram simples e passivos objetos de relações e concepções coisificadas, num jogo que compreendem cada vez menos.

Os acontecimentos da Escola Amadeu Amaral alertam para o conjunto de problemáticos desencontros de que resultaram e dos pretextos por meio dos quais se expressaram. Uma aluna de 18 anos, do socialmente estável bairro do Belenzinho, insurgiu-se contra o exibicionismo sexual de uma aluna de 15 anos, recém-chegada, moradora em outro bairro, no Brás, um bairro que nas últimas décadas passou por grandes mudanças e de certo modo se enquadra no que Lewis Mumford define como áreas de deterioração social. A mais velha passou a atuar como agente de vigilantismo em relação à mais nova, usurpando a autoridade dos docentes e da diretora da escola. Não confiou neles para apresentar suas inquietações morais. Um problema no caso é justamente decifrar as causas e o sentido dessa quebra de confiança.

Do outro lado, a aluna mais jovem, temendo a agressão de suas colegas, trancou-se numa sala desativada do prédio e lá passou a noite. Sua mãe protestou dizendo que a filha tinha brigado e apanhado na escola e a direção não a avisara. No entanto, essa mãe aparentemente não estranhou que a filha menor de idade não tenha voltado para casa e tenha passado a noite fora nem tomou as providências policiais que se espera num caso assim para que a moça fosse localizada. Portanto, uma crise de autoridade que não se limita à escola. No comportamento da aluna mais velha, agindo por conta própria, mas também na relutância dos docentes e da direção da escola em tomar as providências cabíveis em relação a agressões, sem dúvida crise de autoridade no interior da escola. No comportamento da aluna e na complacência de sua mãe, crise de autoridade fora da escola.

Um grande número de escolas brasileiras precisa de uma pedagogia de emergência baseada no pressuposto de que esta sociedade se tornou uma paradigmática sociedade dos avessos. Nela os ritos e procedimentos dos tempos da ordem e do progresso nem sempre funcionam, lidos e interpretados na significação contrária do sentido declarado. Isso vai da escola do bairro do Belenzinho ao poder em Brasília.

*José de Souza Martins é professor titular de sociologia da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros títulos, de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)

Devaneios republicanos

Renato Lessa*
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO /ALIÁS

Na trilha das suspeições, esconde-se a utopia da ‘prisão generalizada’ que tudo vai depurar

Corria o ano de 1996 e dois professores de direito norte-americanos - Frank Anechiarico (então no Hamilton College) e James Jacobs (idem na New York University) - publicaram um livro notável. Trata-se de The Pursuit of Absolute Integrity: How Corruption Control Makes Government Ineffective, editado pela Universidade de Chicago. No livro, os dois autores chamam a atenção para o fato de que durante o século 20 a cabeça dos reformadores institucionais esteve tomada pela visão de um corruption-free government, uma espécie de governo ISO 9000 e não sei quanto em matéria de eliminação de qualquer indício de corrupção. Um dos efeitos dessa obsessão teria sido uma reorientação de foco pela qual leis e prioridades de governo concentram-se mais no controle dos ocupantes de cargos do que naquilo que governos ordinária e supostamente devem fazer: governar.

O livro segue uma deliciosa inclinação cética e sustenta, para ir ao ponto, o seguinte argumento: o projeto contemporâneo de uma república corruption-free implica a adesão a formas de controle disciplinar que acabam por alimentar e exacerbar patologias burocráticas e inviabilizar reformas fundamentais na administração pública. O espírito de investigação suplanta a criatividade e disposição para a inovação. Adeptos de crenças utilitaristas podem bem dizer: é mais vantajoso, para fins de recompensa pública, perseguir malfeitores supostos ou reais e denunciá-los com ímpeto e estardalhaço do que propor inovações legislativas e administrativas.

Anechiarico e Jacobs exumam em seu texto um belo ensaio do jurista Bayess Manning, publicado em 1964 no Federal Bar Journal, publicação oficial do equivalente da OAB naquelas plagas. No ensaio, Manning - então deão da Stanford Law School - falou da presença de um “potlatch da pureza” em operação naquele país, uma obsessão por assepsia nos costumes e nas almas que teria feito com que o vocabulário da política se adaptasse estilisticamente à semântica de um drama moral.

Sounds familiar, certo? Em parte. Na verdade, há, pelo menos, uma importante diferença. Os juristas mencionados tiveram como campo de observação uma experiência cultural fundada na crença na presunção de inocência. Por mais que os “pais fundadores” norte-americanos - James Madison à frente de todos - sustentassem que os homens não são anjos e, portanto, o governo é necessário, havia neles uma crença básica de que a natureza humana, mesmo falível, merece o benefício da dúvida. É isso que constitui a rationale da presunção de inocência. Para voltar aos dois autores, com um pouco mais de ênfase: eles indicam exageros, absurdos e patologias presentes em políticas de controle dos gestores da coisa pública, nos limites de uma cultura de presunção de inocência que, procedimentos legais cumpridos à risca, acaba por constituir um limite à fúria punitiva e investigativa.

Agora, o que dizer de ânimos puristas semelhantes, ou ainda mais dilatados, em contextos nos quais as ficções nacionais mais fundamentais estão assentadas na desconfiança? Uma das características mais salientes da vida brasileira pós-ditadura tem sido a presença asfixiante de narrativas sobre a experiência do País nas quais metáforas do direito penal e uma perspectiva de suspeita têm papel preponderante. Baseados na observação sagaz de que os liberticidas que nos governaram até 1985 não podem ser excluídos do rol dos suspeitos usuais de danos à coisa pública, alguns otimistas julgam que a centralidade adquirida pelo denuncismo a partir de fins dos anos 80 resultou da liberdade de imprensa. Com efeito, isso parece constituir parte da resposta. Mas não elimina o fato de que a atmosfera da república exala desconfiança e a sensação de que, por vezes, estamos metidos em um mistifório de sicários.

O imenso e recente sarilho que envolve o STF, a Abin, a Polícia Federal, em torno da chamada Operação Satiagraha - há poesia e humanismo místico na coisa, então não? - reencena e dá vida a essa tradição. O suspeito original é preso por um delegado federal, tido como suspeito, a pedido de um juiz, também ele suspeito e desqualificado pelo presidente do STF. Há quem diga que o ânimo punitivo da chefia da Polícia Federal sobre o delegado suspeito de ter exagerado no tratamento do suspeito original é muito... suspeito. Não quero ser tomado por blasfemo, mas há até quem estranhe a presteza do presidente do STF na concessão de dois habeas-corpus ao suspeito original. Suspeita-se, ainda, que os advogados do primeiro suspeito estejam entupindo a vara do juiz suspeito com dezenas de petições, para que este enlouqueça ou pare de tomar atitudes suspeitas. (Antes de terminar o parágrafo, o releio e vejo que omiti a menção ao comportamento suspeito dos agentes da Abin e de seus chefes no imbróglio.)

Uma república de paranóicos? Nem tanto, pois é forçoso reconhecer que há imensa plausibilidade nas histórias que sustentam as suspeitas. Este é o ponto: cada uma dessas suspeitas constitui um fragmento de uma interpretação a respeito do que é o País, um experimento suspeito a ser investigado.

Em outros termos, trata-se de uma imagem do País como entidade opaca a si mesma. Como um depositório de enigmas que só podem ser elucidados pela lógica da investigação policial e da desconfiança promovida à política pública. Como não ver aí a produtividade de uma crença de que o País só terá de si uma imagem esclarecida a respeito do que é e poderá ser, se os “culpados” forem encontrados e presos? É claro, essa utopia da prisão final e generalizada de todos os malfeitores não poderá interromper a tara investigativa: há que investigar os juízes que os condenaram, os carcereiros, os advogados de defesa e, se calhar, os que se calam e não estão nem aí para isso, pois disso tudo, quem sabe, pode germinar uma nova geração de inimigos da coisa pública.

Como a malta ignara percebe tudo isto? Suspeito que ela esteja desenvolvendo uma atitude cognitiva e existencial de forte complexidade, uma espécie de mescla de confusão e credulidade absoluta, temperada com uma descrença dotada de tinturas cínicas e fatalistas. Confusão, pelos pormenores sombrios e sofisticados dos enredos e pelo abismo investigativo sem fundo, posto que incapaz do esclarecimento final: afinal, quem são os bons, nessa história toda? Credulidade, posto que à desorientação original sobrevém a certeza de que tudo que está sendo dito é verdadeiro, mesmo quando os fragmentos do drama se contradizem. Em outros termos, trata-se de um fideísmo da desconfiança: não entendo o que se passa, só sei - i. e., tenho a certeza de - que todos são, no mínimo, uns aldrabões. Por fim, a mescla entre cinismo e fatalidade e, por vezes, uma revolta ressentida por não desfrutar dos benefícios dos suspeitos.

Ainda assim, há otimistas. Boas almas crêem na existência de um processo de depuração de hábitos predatórios e republicidas. Conheço algumas que já se dispuseram à imolação pelo advento da sociedade sem classes e, hoje, não contém sua admiração pela Polícia Federal. Torço, mais uma vez, para que estejam certas, mas o travo cético acaba por escapar: afinal, qual o estado da arte de uma república na qual a polícia é tida como a principal guardiã do interesse público e responsável pelo esclarecimento de nossos mais fundos enigmas?

*Professor-titular de Filosofia Política do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Universidade Candido Mendes) e da Universidade Federal Fluminense e presidente do Instituto Ciência Hoje

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